light gazing, ışığa bakmak

Friday, July 20, 2012

'O Cavalo de Turim' (2), Paulo Nozolino

"O cinema deu-me vontade de ver mundo. Através dos olhos de Antonioni percebi as limitações do espaço e do pensamento do local onde nascera. Vivia entre o escuro das salas de cinema e as quatro paredes do meu quarto a ler. Preparava-me para fugir. Adormecia a ver imagens desfilar na mente e frases a repetirem-se dentro da minha cabeça. Um dia tudo parou. Sono pesado do cansaço da marcha, sono sem sonhos. Compreendi que estava a ver, a viver a minha vida e que nada mais interessava. Tem sido assim desde então.

Estive zangado com o cinema durante anos. Espelho da vaidade, escravo do dinheiro, da publicidade, das entradas de bilheteira, dependente de actores, de prémios, de passadeiras vermelhas...
Tinha-se tornado mole, autocomplacente, fútil.
Só o meteoro Tarkovski prendeu a minha atenção. Tinha a dureza do Leste, uma frontalidade e uma postura só possíveis como acto de dissidência a um regime brutalmente feroz. Vi e revi "Andrei Rubliov". Perdi conta às vezes que vi "Stalker"... E voltei a esquecer o cinema.

Pelas viagens que fiz, pela vida que vivi, tenho agora uma ideia bem precisa do mundo. Já não tenho ilusões. Na arte só me interessa o puro, o cristalino, o brutal, o que dói, o absoluto. Mas necessito de beleza para poder suportal tal sofrimento.
Por vezes há surpresas tardias. Há quatro anos, um amigo sussurrou-me ao ouvido um nome: Béla Tarr. Prometi-lhe que iria ver. Ainda bem que o fiz.
Lembro-me ainda da sensação de ver o primeiro plano de "Damnation" (1987) e perceber que estava a descobrir uma outra visão do mundo tal como eu o sentia e estremecer.

Não pára de chover, o cão vadio atravessa o ecrã, a canção ecoa no bar Titanic, o homem deseja a mulher, a mulher deseja o dinheiro, o mundo pertence aos cães e aos delatores. Não há saída.

Foi como se uma laje de betão me tivesse caído em cima. Incapaz de escapar ao ritmo daquele tempo sem tempo. O cinema voltava a renascer para mim neste húngaro que curiosamente tinha nascido como eu em 1955.
Tremi durante semanas antes de decidir visionar as sete horas e meia de "Santantango" (1994).

O comunismo acabou, o vento sopra os papéis pela estrada, o médico bebe metodicamente, o falso profeta engana o povo, a criança tortura o gato,  os pobres dançam e bebem até à exaustão, o Estado tece a sua teia, o mundo é feito de informadores. Não há saída.

Guardei a memória do filme no coração e secretamente passei a ser um incondicional de Béla Tarr. A bofetada ainda tinha sido maior. Nunca tinha visto cinema assim. Desde então tenho evitado ler entrevistas sobre o homem ou saber de mais como os seus filmes são feitos. Só me interessa o que eles me provocam e como com eles me relaciono e identifico. Faz-me lembrar quando descobri Rimbaud e não dizia a ninguém para que fosse só para mim. Não queria Rimbaud banalizado. Não quero Béla Tarr banalizado.
Sou elitista por natureza. Há coisas que são só para alguns.
A pessoa que me pediu para escrever estas linhas passou-me para as mãos o seu último filme, "O Cavalo de Turim" (2011). É por assim dizer o terceiro painel deste tríptico alucinante sobre a condição humana e sem dúvida a sua obra-prima.

O cavalo corre, o vento sopra sem parar, pai e filha vivem numa quinta, aguardente de manhã, uma batata no prato, a repetição dos gestos quotidianos, o cavalo adoece, os ciganos tentam roubar água, o vento sopra sem parar, tenta-se a fuga, volta-se de novo a casa, o cavalo morre, faltam os pavios, a luz apaga-se, espera-se a morte. Não há saída.

As palavras não servem para descrever imagens. As palavras foram há muito corrompidas pelos padres, políticos, banqueiros e escritores.
Não se pode falar do sagrado e é disso que aqui se trata. Ou se venera ou se esquece.
E que filme poderá ser feito e visto depois deste?
Este é o grau zero da realidade, a revelação da mácula que está em cada um de nós.
O fim que tememos.
A luz que se extingue."

texto de Paulo Nozolino para a Actual do Expresso de 16 de Junho-
sim, é isto.










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