light gazing, ışığa bakmak

Friday, May 31, 2013

ir ao cinema

"A aventura deu assunto para risos e chacota, durante muitos dias. Bebeu-se pelo Gineto, que derrubava homens, como o Tom Mix. E no Domingo foram ao cinema rever-se no herói.
Juntaram capitais, em frente ao cartaz enorme colado na parede, no qual um cowboy, de lenço vermelho ao vento e revólver no cinturão, dominava um fogoso cavalo de patas no ar, sobre  desfiladeiro temível. Depois de muito soletrar, Gaitinhas avisou que era o Tim Macacoi em Cavaleiro sem Medo.
Gosto mais do Tom Mix – disse Gineto. Mas Guedelhas afiançou que a fita era genial.
Atrás deles, outros garotos ouviam sôfregamente os comentários.
– Deixa-me intrar contigo, Gineto – pediu um.
– O porteiro nã dá licença...
Pirica reparou-lhe no corpo de criança enfezada e gracejou: – Leva-o ao colo.
A campainha abafou risos de uns e pesares de outros. Vinha chegando gente. Junto do segundo cartaz, rapazes engravatados discutiam a beleza de Greta Garbo. Senhoras passavam, exalando perfumes, que as narinas dos garotos sorviam àvidamente.
– Que cheirinho, pá!
– Dê-me uma entradinha...
– Arreda-te, pequeno!
O guarda chegou-se e mandou abrir alas, para que o Arturinho entrasse, seguido do Sr. Castro e da mamã.
– Uma entradinha... – repetiu o Coca.
– Só me falta cinco tostões...
– Pra trás! – bramou o guarda. – Aqui não é sítio para pedir esmola. Quero a entrada livre.
Os gaiatos, em semicírculo, continuavam a enfadar quem passava. Ousado, um deles tentou esgueirar-se por entre as pernas das pessoas que entravam; mas o guarda trouxe-o para a rua, pelas orelhas.
O grupo do Gineto aproximou-se também, com alarido.
– Pouco barulho! – berrou um dos porteiros. – Inda vai tudo preso, daqui a nada.
– A gente tem bilhete.
– Então, entrem. Eh... Tu, não, que estás sem casaco.
– Prà galeria não faz mal. Deixe-me entrar...
– Já disse que não.
Gineto voltou para trás, furioso. Veio-lhe à ideia o fato azul que o pai lhe prometera no Inverno, e lágrimas de raiva afloraram-lhe aos olhos. Se o guarda não estivesse ali de pistola à cinta, havia de entrar, nem que fosse a golpes de canivete.
A criança raquítica bateu-lhe no ombro.
– Eu empresto-te este casaco, Gineto. Mas óspois contas-me a fita?...
Prometeu que sim. No seu corpo, o casaco parecia jaleca de campino; mas ele apresentou-se à porta do cinema, como se levasse na mão bilhete de camarote. Os porteiros riram-se. E os companheiros, lá dentro, tiveram pretexto para a primeira algazarra, que, apesar das imposições de silêncio, só terminou quando Gaitinhas e outros começaram a ler em voz alta as legendas, para que os analfabetos ouvissem.
Era um sussuro monótono a descer das galerias até à geral, que ficava à frente das cadeiras.
– Mais devagar! – berrou um rapaz, fraco em letras.
Também o Gaitinhas, deslumbrado com imagens e música, ia perdendo a fama de letrado.
– Atã nã lês, Gaitinhas?
– A fita anda muito depressa...
Pouco a pouco, inquietos pela chegada dos cowboys, os rapazes foram-se desinteressando da Greta Garbo. Não entendiam o motivo por que aquela cortesã sem vergonha, que, ali em frente de todos, já beijara dez vezes Armando Duval, recusava agora o amor do moço enamorado. Por isso Gineto cantou de galo na galeria, o que provocou altos protestos das senhoras chorosas, como se fossem elas a Margarida Gautier.
Na rua, a criança enfezada que emprestara o casaco tremia de frio.
O Coca abordava os retardatários e insistia:
– Deixe-me entrar consigo. Deixe.
Quando a fita acabou, os rapazes fizeram comentários soezes e escolheram melhor lugar. Gaitinhas escondeu-se atrás deles, para que o Arturinho, empertigado no camarote, não lhe visse os rasgões do fato. Teve desejos de lhe desmanchar o cabelo nédio com uma das bolas de papel que Gineto atirava da galeria.  Mas as luzes extinguiram-se, e Tim McCoy foi recebido com salvas de palmas.
Voltou o sussurro, como ladainha de fiéis. Todos compreendiam agora por que o cowboy arrebatara aos bandidos a menina da diligência. Gineto lembrou-se de Rosete e os companheiros desejaram a Doida. De vez em quando, estrugiam palmas e berros de entusiasmo, que os garotos da rua ouviam lá fora, atrás da porta fechada.
Aproximava-se o momento culminante em que o herói ia defrontar o chefe dos bandoleiros. Os rapazes mexiam-se nas cadeiras, sustinham a respiração, Gaitinhas roía as unhas e, sem saber porquê, tomava partido pelos bandidos, ao contrário do Sagui, que não desfitava o cowboy. Este descia a rua, em cuja esquina estava o outro, de revólver em punho. Mais um passo, e era a morte certa... Sagui, angustiado, pôs-se de pé na cadeira e soltou um berro, que se ouviu por todo o cinema:
– Cuidado, Macacoi, que o gajo 'tá na esquina!
Logo após, palmas e assobios reboaram na sala, porque o bandido fora dominado. E o miúdo sorriu-se por ter avisado a tempo o Cavaleiro sem medo.

Soeiro Pereira Gomes em Esteiros.
porque era estranho que este episódio não estivesse em qualquer lado, na net. procurando, também estranho que existam mais trabalhos ou artigos sobre Esteiros nas universidades brasileiras ou por pessoas brasileiras do que portuguesas. sempre achei piada ao papel das freiras, as mais fiéis guardiãs de um sistema que as segrega. na literatura assim é também, como na vida. depois da libertação dos anos sessenta, setenta e do império dos modismos na sociedade livre e de consumo, as velhas freiras persistem ainda mas de ideias renovadas: insistem em venerar como cool heróis que as depreciam com sarcasmo. Esteiros deprecia apenas os muito ricos, que hoje seriam chamados 1%, mas sem dúvida é vítima do canon e do modo engajado de fazer história.


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