light gazing, ışığa bakmak

Tuesday, March 18, 2008

The Lovebirds: Lisboa fora de horas de Bruno Almeida

Fui ver o filme de Bruno Almeida de que falam entusiasmadamente todos os semanários e saí de lá como se tivesse tomado um duche fresco: limpei-me de grandes produções, de melodramatismo, de lições morais, de gente bonita e perfeita, da moralidade americana. Saí do cinema tendo estado em Lisboa, revisitei partes da minha vida. Ruas e pessoas.



Ver um filme e pensar sobre ele obriga quase sempre a um bem ou mal, ou se gosta ou não, o filme é bom ou não presta, crítica negativa-positiva. Este filme desorienta demais para que se possa encaixá-lo nesta lógica. No caso de Lovebirds gostei mais do que desgostei, mas não posso dizer que isto é um filme, no sentido que normalmente damos à palavra filme. Não há uma narrativa, há várias fragmentadas que nada têm em comum a não ser a cidade de Lisboa. Os personagens nunca se encontram e dizer que o ponto comum é o amor é forçar um título ao patchwork: afinal há alguma coisa que não fale de amor?



Gostei em Lovebirds da fragmentação levada ao extremo: é curioso o sentimento de se estar a ver uma obra de outra pessoa. Pela película passam muitos outros momentos da história do cinema, uma espécie de tributo a outros realizadores, outros momentos. O arqueólogo obsessivo respirava Tarkovski, o jantar de amigos saiu de Woody Allen, o taxista em movimento pela cidade dialoga com Taxi Driver, o filme todo fala com um dos meus filmes favoritos de sempre, Nova Iorque Fora de Horas. Só não consegui encontrar a fonte de um Joaquim Almeida que se esconde, em cuecas, nos corredores de um hotel fino, mas estou certa que essa referência existe, mais do que uma, provavelmente humor britânico. Este jogo de espelhos, este puzzle, desconcertante para muitos espectadores, estou certa, foi para mim fonte de um enorme prazer.



Dos muitos actores que dão corpo e rosto aos personagens da minha Lisboa nocturna, não gostei do outro arqueólogo, o da biblioteca, que estragou com os seus pontapés no inglês uma cena que seria quase Shakespeariana. A caracterização também não ajudou, diga-se. Gostei muito: da sempre lindíssima Ana Padrão, uma actriz perfeita, representação perfeita. Esta mulher noutro local "limpava" a maior parte das actrizes holywoodescas (este sempre o consolo português). Gostei muito: do russo Dmitry Bogomolov. Um taxista memorável, um dos quadros mais bem conseguidos do filme quando se senta no quarto da prostituta momentos antes de a matar, um trabalho de actor memorável, de longe o melhor do filme. Bogolov, professor em Lisboa, tem de partir, é demasiado bom para ficar por cá. O trabalho de adereços feito no quarto da brasileira é muito bom, a boneca, os bibelots. Eu gostava de ter feito esse trabalho, quem decorou o quarto cor de rosa está de parabéns. Rogério Samora: perfeito, muito bom como sempre, embora tenha um quase anti-papel, o actor cobarde, metalinguagem, meta-diálogos, meta-personagem. E o melhor de tudo (à laia de Óscar vai para), o actor de si mesmo Fernando Lopes. Ele e os seus vícios, palavras, fumo, ele o motivo para ir ao cinema e ver Loverbirds, porque ninguém deveria perder os minutos que Fernando Lopes passa em frente à câmara, o que pode dizer e o que fala. Para além de excelente. (Visto que este momento me deu uma vontade indomável de ver todos os filmes que Fernando Lopes fez até agora, onde está O Delfim, esgotado na Fnac, desaparecido de todo o lado em que se vende cinema. Porque é que tenho que gramar com o maior lixo americano, o mais rasca e medíocre que qualquer teenager borbulhento e descerebrado faz numa garagem com a câmara que recebeu o Natal passado, e não posso ver os filmes de Fernando Lopes? Porque é que posso "levar" com toda a obra de um tal Nicholas Spark e não encontro em nenhuma, repito nenhuma livraria, a obra completa de José Cardoso Pires? Desabafos, desabafos por um país ainda soterrado numa interioridade saloia.)



É verdade que Lovebirds é muito o meu cinema. Não posso dizer que se trata de um filme, é mais uma colagem. Não posso dizer que é um filme muito bom, embora tenha momentos quase perfeitos. Lovebirds é a minha cidade, é o sujo de Lisboa, as ruas por onde passei, as memórias que tenho. Lovebirds é a família da personagem de Ana Padrão, as miúdas lindas, a avó desdentada. É um filme naíve e pretencioso, bonito e escavacado. Assim vive a cidade imutável face ao rio.



Um grupo de umas dez raparigas entraram na sala do cinema já o filme tinha começado. Sentaram-se aos risinhos e nem sequer estavam já na primeira adolescência. Levantaram-se a meio e voltaram à sala, em fila. No fim, interpelavam as pessoas, perguntando-lhes se tinham percebido o filme. Assustador como o espectador jovem português, habituado a gerações de Scary Movies, está viciado em vacuidades. Bruno de Almeida, que viveu vinte anos em Nova Iorque, aprendeu a re-ver Lisboa e foi por essa minha Lisboa revisitada que lhes disse que sim, tinha percebido bem o filme.



Homepage de Lovebirds, aqui.
E aqui, o trailer.

4 comments:

Anonymous said...

Não conhecia o filme. Já essa tua descrição das meninas no final fez-me sorrir, Dulcemeia. Dava tanto para pintar um quadro. Ou já o pintaste. :)

Ana V. said...

Em dia de discussão de quem fura o quê na cara, talvez fosse melhor discutir o que se passa por debaixo do cabelo. Mas isso são mais manias minhas... Beijinho de looooongo fim-de-semana PEC!

João Manuel Vicente said...

Vi o filme hoje mesmo e quero que o Bruno saiba que amei o filme.
Saber que foi ele o realizador, o montador e o operador de câmara leva-me a agradecer-lhe a si de modo muito particular o prazer de fruir do objecto artístico que produziu.
Antes de mais, o som do filme. Que não existe salvo no que respeita às palavras das pessoas que lá estão. Para mim, não há lá som nenhum a mais, ficando esculpida de forma finalmente nítida no cinema português as palavras que os actores estão a dizer..
Ainda no som, a ausência de sons redundantes permite que a poesia musicada pela voz do Camané surja ainda mais apaixonante..
Os actores. O Fernando Lopes, magnética a sua representação, sedutora a sua voz, a cadência, a sua cara.. e a aura que irradia...magnífica ainda a interacção com o Rogério Samora que nitidamente deixou misturar - e bem e felizmente - a sua fascinação pessoal pelo Fernando na cena em que este tenta acender a cigarrilha...
Lindíssimas as ruas autênticas, "não limpas", "não limpadas" e tão usadas e vividas de alfama, da baixa, de algumas "catacumbas" da cidade..
Particularmente bela a existencial e crua luz da manhã na lisboa antiga e o recorte de luz nos rostos e corpos do casal, na tal última cena...Que tempo parado ali, que tempo para sempre eterno ali! Lindo, perturbador, poético, triste e feliz e trágico!
Isto o que eu senti. Mais num plano de análise racional, pareceu-me exposta no filme a questão da "empatia", a vontade de alguém se idealizar no lugar do outro, de fazer a pergunta: como me sentiria se fosse eu que estivesse ali.
Ou seja, a faculdade (que é às vezes também uma generosidade) de ver pelo ponto de vista do outro, de dar ao outro a possibilidade de ver ao nosso lado o que, do nosso ponto de visionamento, podemos ver, sentir e ser..
Acabo como comecei: obrigado, amei este "The Lovebirds".

[ momentos ] said...
This comment has been removed by the author.
 
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