light gazing, ışığa bakmak

Monday, November 19, 2007

A loucura insólita de um Pierrot lunar



Sábado ao princípio da noite, enrolo-me debaixo de édredons e preparo-me para uma noite de cinema, sem pipocas. Porque faz frio na rua e porque preciso de colmatar uma grave falha no meu carácter: nunca ter visto "Pierrot le Fou", de Jean-Luc Godard.

Os filmes de Godard remetem para os Cahier du Cinema e para a Nouvelle Vague francesa, a nova onda que mudou o modo de ver cinema. "Pierrot le fou", dizem, é a Nouvelle Vague, mas é também muito mais. Em Pierrot, obra-prima do estilhaço, tudo aparece em sequências on-off, que parecem por vezes aleatórias. E talvez fossem, afinal os diálogos eram finalizados durante a filmagem, o guião escrito ou esboçado um dia antes. A narração é suspensa muitas vezes, o som é interrompido, cenas são trocadas de ordem. E, surpreendentemente, o fio da narrativa mantém-se intacto, o espectador salvo do caos temporal por uma linha ténue.

"Depois de ter chegado aos cinquenta anos, Velasquez deixou de pintar coisas concretas ou precisas. Ele vagueava pelo mundo material, penetrando-o, como ao ar ou ao fim do dia. No brilho das sombras, ele apanhou desprevenidas as nuances de cor que transformou no coração invisível da sua sinfonia do silêncio. A sua única experiência do mundo eram aquelas misteriosas cópulas que uniam formas e tons com um movimento secreto mas inevitável que nenhum cataclismo ou convulsão poderia interromper ou evitar. O espaço reinado supremo... Era como se uma radiação ténue deslizasse sobre as superfícies, modelando-as e munindo-as de forma, carregando noutro lado um perfume, como um eco, que seria depois disperso como um pôr-do-sol, acima de todos os lugares em volta."

Este o texto (História da Arte de Elie Faure) que Jean-Paul Belmondo lê no início do filme e que oferece uma chave possível. A história do filme, um enredo de gansgters e de um casal romântico em fuga, não é o que torna este filme único. Outra história teria servido igualmente. Godard quer captar a vida, o que está entre as palavras e as coisas, o que está entre um homem e uma mulher, o que está no espaço entre dois pontos, uma "sinfonia do silêncio".




Gostei de ver o espaço crescer entre o homem e a mulher. Ferdinand, que se aproxima cada vez mais da sua verdade - "solite et insolite." - enquanto Marianne se entedia, farta de estar em lugar nenhum, farta de usar sempre o mesmo vestido, farta que nada aconteça. "Tendre et cruel".




Gostei mais ainda da invasão da narrativa por outros diálogos / monólogos: as palavras que Ferdinand escreve no seu diário, a banda desenhada, os textos que lê, as imagens que enquadram tantas vezes a cara de Anna Karina, deslumbrante no ecrã e fazendo crer em momentos que a realidade não poderá nunca ser captada em imagem. Uma "batalha" de fragmentos.




O domínio total do presente, a vida agora.
"Tive uma ideia para um romance. Não escrever a vida de um homem, mas apenas a vida, a vida ela própria. O que há entre as pessoas, espaço... som e cores... Deve haver uma maneira de conseguir isso; Joyce tentou, mas deve ser possível fazer melhor", diz Ferdinand. Nem sequer tento fazer muito sentido, li alguns bons textos sobre "Pierrot le Fou", e vejo o filme a ultrapassá-los a todos e a pedir o "rebobinar" da cassete, "play it again, Sam"... Que belo Sábado!

Carregado de outros espaços de escrita e de imagem, é o texto perfeito que fecha a ironia final de Pierrot, versos de "Une saison en enfer" de Rimbaud.

"Elle est retrouvée!
Quoi?
L'éternité
C'est la mer mêlée
Au soleil."


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"Art as Life unscripted"
"Pierrot le Fou"
"De la citation à la création"
"Os tecidos citacionais"
"Jean-Luc Godard"

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