Noite de cinema e de memória na mesa de luz: "Nosferatu", um dos meus filmes preferidos, introduzidos por João Bénard da Costa num texto publicado pela Cinemateca. Este texto faz parte de um pequeno volume dedicado a Murnau e publicado, por ocasião de uma retrospectiva, em 1989. E uma worddie play que encontrei escrita a lápis num pedaço de papel dentro desse mesmo livro. Suponho que seja de um grande amigo de então, Henrique C.
"Mesa em café vertical, absinto, sinto
Círculo tangente, evidente que sente
Os glóbulos oculares
Tange o alaúde secular no cérebro
Globular
"Mater!" do início e do fim, traduz-me
Água. Vento - alimento."
Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens
1922
Nosferatu, o vampiro
um texto de João Bénard da Costa (1989)
"O sangue, o mar, a mulher. Em torno destas três imagens se articula a primeira das múltiplas adaptações para o cinema da célebre novela de Bram Stoker e do celebérrimo Conde Drácula. A primeira, e seguramente (mau grado os muitos e admiráveis Dráculas futuros, de Tod Browning, a Terence Fischer e Paul Morrisey) a mais bela, um dos mais belos filmes de todos os tempos. Aqui Drácula chama-se Orlok, e é Nosferatu, o não-morto, aquele cujo nome ressoa como um grito de ave de rapina e que tem o poder de obscurecer as imagens.
Antes de retomarmos o fio à meada (fio que passa pelo sangue, o mar, a mulher) alguns dados históricos. Albin Grau, grande pintor alemão, e autor dos décors e guarda-roupa do filme, parece ter sido o inventor do nome Nosferatu e da ideia geral do filme que se afasta bastante do romance de Bram Stoker (contou, mas não deve ser verdade, que ele próprio tinha conhecido em Praga um homem que presenciara a abertura de um caixão contendo um desses "untote" (não mortos) de que fala o filme). Henrik Galeen, realizador dinamarquês radicado na Alemanha onde um ano antes de Nosferatu, co-realizara com Wegner O Golem foi o autor do argumento, o único que escreveu, seguindo muito de perto o estilo do célebre Carl Meyer. E Murnau com a sua paixão pelos décors naturais filmou praticamente tudo (à excepção dos interiores) nos locais da acção: Lubeck e Wismar, cidades medievais do norte da Alemanha, para as sequências da terra de Hutter, nos Cárpatos para a terra do Vampiro, no Castelo Oravsky na Eslováquia para o castelo do conde (quem quiser ler o admirável Murnau de Lotte Eisner, encontrará a indicação precisa de todos os locais). Nada é "maquette" ou "décor" como nos filmes tipidamente expressionistas, ou em Fritz Lang. Como notou Balasz o caminho para o sobrenatural passa pelo natural. E o filme foi feito com actores muito pouco conhecidos e com uma obscura vedeta de "music-hall" (Max Schrek) no papel do Conde. E aí há quem desconfie: diz-se que Max Schrek apenas emprestou o nome ao assombroso personagem, assombrosamente interpretado e que por trás da máscara se esconde outra pessoa. "Ninguém" - escreve um pouco fantasiosamente o crítico surrealista francês ado Kyrou - "conseguiu jamais desvendar a identidade desse extraordinário actor que uma caracterização genial tornou para sempre desconhecido. Houve várias suposições, houve até quem dissesse que era o próprio Murnau. Quem se esconde atrás do personagem de Nosferatu? Nosferatu em pessoa?" Seja como for, Klaus Kinski, Nosferatu para Herzog, disse ter visto o filme mais de 50 vezes quando preparou o papel e continua a não perceber como é que um corpo era capaz de tanto, como eram possíveis aqueles movimentos, aqueles gestos.
Podemos voltar ao filme. E começar pelo sangue. Das imagens ele está ausente, mas tudo o que está entre elas e nelas é de sangue que nos fala. O sangue é a vida dirá Renfield que antes preveniu Huter de que a viagem lhe custaria algum suor e talvez um pouco de sangue. E o sangue é a alma de Nosferatu, por oposição à terra em que o vampiro se transforma durante o dia. Da terra vêm os ratos, a peste, a morte. Do sangue, a vida, o amor, a comunicação (a simbologia do sangue na sua ilustre genealogia judaico-cristã daria, à luz deste filme, para página e páginas de conversa). Ligando-a agora aos pontos de partida e de chegada acolhidos, recordemos que é através do sangue que se estabelece a misteriosa comunicação (dos santos? dos demónios?) entre o "nome que ninguém pronuncia" e Ellen, esse duplo de Nosferatu, aquela que não precisou de atravessar a ponte para que os fantasmas viessem ao seu encontro. Quando Hutter se corta e tem lugar o primeiro cerimonial do sangue (em "off") não vemos o vampiro a beber, mas Ellen levanta-se da cama, nas pontas dos pés, caminhando (muito antes de Renfield) ao encontro do Mestre.E no duplamente obscuro plano do seu encontro final com o Conde, a um cando da imagem, já chamada a mais erótica de toda a história do cinema, pelo seu sangue (o sangue puro) morre Nosferatu, sem escutar os avisos do discípulo. O plano do galo é o do orgasmo-vida-morte. É a troca do sangue, é o sinal de passagem e pouco perdemos (porque já lá está) que a censura da época tenha proibido a transmutação de Ellen em novo Nosferatu.
O mar - não se está a pensar no espaço do navio dos mortos e na fabulosa viagem de que ninguém se salva, como Nosferatu nos famosos "contra-plongé" contra as velas. A partir da "noite de núpcias" (baptismo de sangue) de Hutter (e aproveita-se para sublinhar como Hutter é femininamente retratado)) intervem nas transições entre o "cá" e o "lá" os célebres e imitadíssimos planos de ondas a rebentarem de Murnau sem função aparente e servindo cmo o arquétipo dos "raccords": elemento de ligação e comunicação de tudo a culminar num dos mais belos e insólitos planos deste filme: sentada num banco, entre cruzes, Ellen espera, prevê e revê. A imagem mais surreal da história do cinema? E no famoso plano em que o mar (navio, Nosferatu) entra na cidade e dela se apossa.
A Mulher - não é preciso ser-se muito sabido em símbolos para se saber que o sangue e o mar são outros nomes dela. Desde o início (plenos de felicidade familiar) que aquele ser habitado invoca o que vai acontecer. Astruc disse em relação a todo o filme o que é particularizável nesses planos: "Um horror sem nome espreita na sombra, por detrás desses personagens tranquilos , instalado a um canto do enquadramento, como um caçado à espera da presa". Esse horror sem nome são, nesses planos, as flores (ligar ao tema central posterior do personagem do professor, das plantas carnívoras e ao incrível plano do grifo) e aos gatos (prenúncio dos lobos e cavalos "do lado de lá da ponte"). Depois, através dela tudo se comunica, culminando no seu apelo (ele vem, tenho de ir com ele) pronunciador e paralelo do de Renfield, no plano subjectivo em que se vêem na rua os caixões (cortados pelas traves da janelas donde vê) ou nesse outro inadjectivável, em que abre a janela e, de braços também abertos, se oferece ao mestre, cuja sombra, depois, percorrerá lentamente o seu corpo.
Muito mais que do medianeiro Hutter a viagem é dela, sendo pois no seu espaço que através do seu corpo se entrevê (as casas vistas para além das janelas) que Nosferatu ganha a imagem (no espelho) e perde a sombra (o fumo dos pés).
O espaço não dá para mais e ainda quase nada se disse da portentosa riqueza deste filme único."
E aqui, de Michael Koeller, em Senses of Cinema.
light gazing, ışığa bakmak
Friday, December 21, 2007
"O sangue, o mar, a mulher" em Nosferatu de F.W. Murnau
Publicado por Ana V. às 5:32 PM
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