light gazing, ışığa bakmak

Wednesday, October 14, 2009

dia sem


história. à excepção do excelente The Slant Book, que chega a Portugal com quase um século de atraso. mesmo assim, o truque estava na tradução e gostei mas é preciso ler e reler e reler nas duas versões. projecto de caravela, projecto de bússola (onde nasce o sol? e para onde vai o lonely cowboy?) projecto de óculo. relembrar os passantes que almoço-brunch-tosta-sumo na zona do Restelo deve passar por MyFood. acabando este, terei de refugiar-me das personagens perversas (e sem alma) sob um bom amieiro de Aquilino Ribeiro, e nem rimei de propósito, obviamente.


porque não.

O Pão-de-Ló
Aquilino Ribeiro

O Colégio contratou para professor de música o senhor Macedo, mestre de banda em Aguiar da Pena. Dele se apregoava que era pessoa idónea tanto para dirigir orquestra como charanga, e inexcedível de batuta em punho quando regia uma missa a instrumental. Viera das bandas do Porto, mas qual fora o seu passado ninguém investigara, nem houvera ensejo de ele o dizer. Aparecera na vila inculcado aos filarmónicos da terra, que careciam dele, por um patrício com loja de tamanqueiro na Rua Escura. Estipulados os honorários, ali pegou de estaca com mulher e um filho já espigadote.
Os directores do Colégio – dizia o P. e Sulpício, o mais melómano dos prefeitos, que inspirados pela Virgem do Heptacórdio – assoldadaram-no pois, e um tufão de jucundidade varreu a bisarma taciturna, sua pedra, abóbadas e horizontes esquálidos. Muitos alunos correram pressurosamente a inscrever-se na aula de música, mediante uma espórtula tão insignificante que não houve papá ou tutor que a não suportasse de bom grado.
O senhor Macedo vinha no sábado à tardinha, dava uma primeira lição, e despedia no domingo depois da segunda lição, salvo os dias em que a banda tinha compromisso em festividade ou arraial. Nessa eventualidade trocava os dias com a quarta e quinta-feira. Os alunos, diante deste móvel calendário, no sábado de tarde, durante o recreio, que era a hora crucial para a chegada do mestre, postavam-se aos dois grandes janelões, virados para a serra da Estrela, de olhos no caminho, ao longe, um pouco além do Miradouro, onde ele devia surgir. No Inverno, estava-se a mil metros de altitude, com o frio que inteiriçava a terra, não se pensava em abrir a vidraça, e, muito menos nos dias de codo, quando as árvores se transformam em andores cintilantes de pedrarias. E os rapazinhos comprimiam o nariz contra os vidros, dando cotovelada e espremendo-se para caberem todos.

– Está a chegar à nascente – dizia um.
– Está nada! É um cabreiro com o rebanho – opunha outro.

A distância era grande até a lomba do caminho, e seria preciso ter olhos de lince para distinguir-se dali silhueta humana. Mas cada um deles se entregava a este jogo de curiosidade mental, espreitando por óculo de ver ao longe, calibrado pela fantasia. E amassagavam mais o focinho deslavado contra os rectângulos de vidro, que tinham de varrer com a mão, de quando em quando, embaciados pelo hálito de tantas bocas. Diante deles, até a guarita branca do Miradouro, estendia-se profundo e extenso um horizonte gris e parado de Dezembro. As águas do Longa cortavam com seus filetes brancos e ténues como retrós, tão perto estavam da madre, reluzindo ora aqui ora além por entre os amieiros, a paisagem baça e siderada. Corvos muito grandes e muito negros, que davam a ideia de retingidos a tinta de nanquim, cruzavam a espacidão côncava, animados dum impulso irreal. A Ocidente, uma coluna de fumo, estorgada, fogueira de pastores, subia, subia no ar, dissolvia-se sem cocar nem franjado.
Os alunos não se cansavam de olhar. Pois havia alguma dúvida que dum instante para o outro ia descoser da vaguidão do horizonte o vulto tropiqueiro do cavalinho que trazia o senhor Macedo, ou as abas a fraldejar do seu capindó, se vinha a pé? E empinocavam-se uns sobre os outros, pois que o posto de observação era estreito para todos. Choviam os protestos. Trabalhava, por vezes, o sopapo. Uns que tais despegavam-se do cacho às upas.
Se o mestre vinha a cavalo, abalavam todos para a portada, e as boas-vindas eram tanto para ele como para o garraninho vermelho, pequenote, de grande cauda vassoiruda e compridas clinas despenteadas, olhos grandes a rir e a dizer para todos: cá estou, amigos, cá estou!
Os seus olhos, com efeito, eram lagos de doçura. Abraçavam-no uns pelo pescoço, enquanto outros lhe puxavam o rabo e davam palmadinhas nas ancas. Este ou aquele descobria que, mirando-se no espelho risonho das suas pupilas, era mais pequenino, ágil e mais bonito, e punham-se de joelhos diante dele, porque baixara logo a cabeça e reatava as suas meditações. Em tudo o cavalinho permanecia quieto e benevolente com a petizada, como se estivesse divertido ou hipnotizado.
Mas eles breve se saciavam do enlevo, que não sofria renovamento. Uma fífia de flauta ou de violino fazia-os galgar de cambulhada para a sala de música. E dali a pouco a serra coroava-se dum diadema dionisíaco de sons.

Às vezes – os tais dias de função nas aldeias –, o viso do caminho a sul escurecia sem despontar o senhor Macedo. Resvés das urzes, ao alto da balsa, onde quanto ao professor de geografia, o P. e Sulpício, o Longa tinha a nascente, um fuminho adensava-se, como se a terra vestisse a sua samarra de noite. O lume de água apagava-se mesmo nos meses pluviais, quando era um candelabro. No Verão, mal luminescia.

- Mas, ó padre Sulpício – não perdia ensejo de contestar o P.e Barros, que era marrão – o senhor averiguou bem que ali é que nasce o Longa? Ou decretou?
Sim, ele havia decretado contra os ventos e marés da opinião estabelecida que ali nascia o Longa. O senhor Flora, professor de primeiras letras, que era dali natural, sustentava que o Longa nascia no chafariz dos Chantres, ao fundo do lugar. A madre era aquele depósito valente de água, que brotava de duas bicas, com fartura cabonde para abastecer a população. Nos meses tórridos ou meses de inverno pegado, o jorro era inalterável, alimentado por canalículos de granito, que não podiam transportar mais água nem menos, dada a compressão do grande maciço de pedra da serra (pena-penha) sobre a rede subterrânea hidrográfica.
O P.e Sulpício, bom homem e grande ratão, sustentava que com certos rios e ribeiros do planalto havia que desconfiar da origem. Geograficamente, qual era ela? A que vinha de mais longe. Ora, tendo contornado a povoação, pelo lado da Senhora da Pena Esquecida, descobrira um fio de água que vinha saltante e cantante lançar-se no arroio proveniente do chafariz dos Chantres. Medira-o até a confluência, e inclinara-se a que fosse aquele o verdadeiro manancial do rio que atravessa montes e vales, rega milharais e hortejos, faz moer centenas de moinhos e azenhas, produz gordos robalos e trutas, lampreias de Ponte Mariz em diante, e enguias em barda para a foz, e forma a ria especiosa que torna Ulmeiro a Veneza de Portugal. Havendo, porém, perlustrado o terreno com os discípulos durante vários passeios dominicais, acabara por descobrir, perto do Miradouro de Aguiar da Pena, uma fontainha vivaz, borbulhão miraculoso que nunca secava, mais longo em profundidade geográfica que as outras nascentes, e tivera de reconvir que era aí que devia considerar-se a origem do Longa.
Na aula de geografia, acontecia perguntar:
– Menino, onde nasce o Longa?
Para o arreliar diziam apenas:
– Na serra da Pena...

Se o quisessem ver sorrir e de bom humor acrescentassem:
– ...junto do Miradouro de Aguiar da Pena.

Um pinheiro manso, extático, marcava-lhes no ar, às vezes nebuloso, um alvo menos fugidio aos olhos. Levantava-se ali como um gigante, dos contos antigos, a guardar um vau. Nos dias claros, reflectia-se na bacia de água, que se cavara ao pé, e os pastores vinham sentar-se à sua sombra a britar os pinhões.
Macedo era um homem seco de carnes, bronzeado e alto, que se poderia julgar um dos frades de Zurbarán, liberto da coca do capuz. A pele estalava-lhe, recalcada sobre os ossos da face, atando os queixos que, com o bigode caído à Vercingetorix, lhe dava um ar nada comum, o seu tanto tumular. Ria pouco, de humor muito desigual, não obstante ser homem de bom fundo.
Umas vezes mostrava-se-nos sombrio de todo, sem chegar a ser brusco, outras vezes a sua efusão, com os padres mormente, expandia-se franca e satisfeita, prevalecendo ao recato monacal, adoptado na Casa.
Para os colegiais, a sua presença significava um dia de salvatério à ferrugenta grilheta do hic, haec, hoc, do emprego do nome predicativo, e da crónica do vasto e aborrecido orbe terráqueo. A música era o rubi, o grande rubi sobre que rodava toda a engrenagem da libertação, e por isso, não falando no mais, todos romperam a solfejar e cada um a preparar-se para tanger seu instrumento.

***

Atrás duma inovação daquelas, veio a sua complementar. Chegou ao conhecimento do P.e Ireneu das Dores, o director, que para os lados de Valbom uma filarmónica, excomungada pelo bispo, sucumbida à concorrência, ou falha de mestre capaz, decidira dissolver-se, para o que iam ser postos em almoeda seus instrumentos e barretinas. Quem dava mais? Comprou-os o Colégio da Pena por uma tuta-e-meia, salvo o fardamento, já se deixa ver.
Chegou o instrumental em dois grandes caixotes, porque um só seria excessivamente volumoso com o bombo e caixa. Muito bem acondicionados em palha de embalagem, os metais, trabalhados à pasta Amora, que tinham estado em exposição a tentar o comprador, reluziam como o sol. Não traziam amolgadura que desse nas vistas, mas, procurando bem, dava-se conta, mercê de sinais quase microscópicos, que o baixo, barítono e trombones tinham entrado algumas vezes nos banzés de fim de arraial, arvorados em maças de Hércules e por certo réus de muita cabeça rachada.
Os alunos plantaram-se em volta dos caixotes, olhos acesos, boca escancarada, suspenso o fôlego, levemente flectidos no jeito de aprender, numa cabeceira o P. e Ireneu e o P. e Sulpício, dando o centro a mestre Macedo, na outra o P. e Barros, comprimido entre o Zé Ratatau e o Martinho Somelga. O Repas com um martelo e um cinzel procedeu à efracção dos mágicos volumes, mais cautelosamente que um médico manobrando o fórceps. Depois quando todos os instrumentos vieram a lume e que cada um atropelava os outros para os dispor contra o muro e se apresentaram perfilados sobre suas bocas, ou, aqueles que não davam pedestal, deitados sobre o velho Erard, com olhos ansiosos os estudantes consultavam os professores. Ia fazer-se a distribuição. Havia semanas e semanas que os padres matutavam no magno problema, de acordo com Macedo. A última palavra era do mestre. A vocação de cada um tinham-na eles pulsado e classificado numa escala segundo o bom ouvido musical e a falta de bossa.
Por minha parte todo me temia. Eu começara por querer aprender flauta, instrumento por que tinha um filé particular, mas que ao cabo de teimosas e infrutíferas tentativas me vira forçado a abandonar por incapacidade para o sopro. Dali passara à rabeca. O Semitela, pai do nosso criado, possuía uma, muito velha, que herdara dum tio imaginário, em que eu vira uma vez um figurão de Lisboa tirar desenfastiadamente variações plausíveis, e dizer:
- Arrisca-se a ter aqui um «Stradivarius». Guarde-a!

Minha mãe mandou-me a rabeca, à experiência, tentando ao Semitela com boa espórtula, e foi uma risota geral na casa sorumbática. Tinham-lhe aparado o braço de modo a torná-la uma rabeca de descante, ao sabor do corridinho e da chula, e mais modinhas de batuque. O velho Macedo, que tocava todos os instrumentos, afinou-a, mesmo assim, passou resina no arco, e tirou dela meia dúzia de compassos, que estarreceram a todos. Mas breve a encafuava na suja bolsinha de amostras pronunciando:
– É boa para os cegos que andam pelas portas.
Tentei a mandolina. Ao fim de dois meses não tinha passado do primeiro tempo duma valsa.
– Pega tu... pega tu... e lá, ó Sisto, atreves-te com a requinta?

Quem falava era o P.e Sulpício, braço direito de Macedo e seu lugar-tenente.
Ele é quem tocava órgão no coro, sempre que Macedo faltava.
O pega tu era o cornetim para o Eugénio, a flauta para o Miranda, em que já era sabido, a requinta para o Henrique. E tu, mais tu, aquele, para o Zé Ratatau a caixa, pratos para o Martinho Somelga, bombo para o criado, a mim não se me dava nada. Restava uma trompa. O padre encarou-me em silêncio:
– Tu serás capaz de dar conta do recado?
– Eu, quê? A trompa? Resta saber se quero...
– Ai não queres? Melhor.
O Macedo olhou para mim:
– Aceite a trompa, menino Alexandre, depois se verá...

E conformei-me. Dois meses decorridos, acertava com o meu acompa-nhamento menos mal: epó, epó, epopopó!
O casarão, entretanto, tornara-se no cume da serra, em véspera de feriado, o mais vibrante e estrondoso vulcão de ruídos polifónicos que imaginar se pode. As janelas vomitavam gamas como ondas de lava. Os sábados eram os dias cíclicos da astronómica erupção. Uma tarde, a hora de noa, encontrei-me de joelhos diante da Senhora da Pena, muito reginal no seu altar de prata e mármore precioso, a pedir-lhe com todas as veras da alma que dispusesse as minhas faculdades de modo a sair-me bem como executante de trompa na filarmónica do Colégio. Assim era difícil? A mim sempre me pareceu mais complexo que o latim ou a álgebra. Todavia lá ia, dá-lhe que dá-lhe, e se às vezes o Macedo me deitava um olho feroz ou o trombone à direita me largava um cotovelão porque me atrasara no compasso, logo me remetia o melhor possível: pó, pó, po-po-pó... pó.
Chegou o mês de Junho, mês das peregrinações. Um dos romeiros, que estava a fazer a semana do Espírito Santo, homem das bandas de Lamego, calça de saragoça, corrente de oiro de tranqueta, dois fios, e um dobrão de D. João V ao pendurão, veio parlamentar com o P.e Ireneu quanto à possibilidade de acompanharmos de fanfarra a grande procissão da sua terra que formava no Miradouro da Nave e avançava para o Santuário, triunfalmente, de pálio, guiões, cruzes alçadas entre bandeiras das confrarias e lanternas. O padre consultou Macedo. Sim, desde que trouxesse o filho para o cornetim, podia dar-se-lhe um jeito...
Era dali a seis dias e passámos a ensaiar-nos muitas horas, de manhã ao sol-pôr, com jubiloso menoscabo dos compêndios para nos desempenharmos com honra duma comissão que representava uma vigília de armas.

***

No sábado à tarde chegou o Macedo Filho. Era um esbelto moço, bigodinho apenas a sombrear-lhe o lábio, alto, desempenado, cabelo em asa de corvo sobre a têmpora direita. Vestia um fatito de cotim, mas de bom corte ou assim me pareceu, que não prejudicava nada a sua elegância natural. E como era simples e sociável conquistou-nos logo a todos e em volta dele éramos outros que tais mirmidões para com uma pessoa real. Contou-nos os passeios que dava com a banda de Aguiar, em que tanto tocava cornetim, como requinta, trombone de vara, ou saxofone. Arranhava todos os instrumentos como o pai, mas do que mais gostava era de violino. Na vila, uma menina brasileira ouvira-o tocar, e agora era sua discípula e ia dar-lhe lições em casa. Embora de génio cordial e expansivo, que necessidade tinha de no-lo dizer?! Reparei que a voz lhe mudara de tom, velando-se de certa doçura e quebrando-se em reticências, ao mesmo tempo que baixava os olhos. E logo tracei o meu horoscópio: se a menina era realmente o que devia ser, linda, afável e prendada, amava com certeza aquele bonito rapaz, digno herói dum romance abençoado. Ele, por sua vez, se a discípula era a deidade que prometia, devia saber derribar todos os obstáculos até chamar-lhe sua e serem felizes. E, construído o enredo, fiquei tão certo dele como da luz que nos alumia.
O domingo, festa do Pentecoste, ficou para nós data memorável pelo relambório e exaltação. Das três festas da Pena, Espírito Santo, S. Barnabé e Assunção, era aquela primeira por que eu delirava. Naquele ano, houve uma semana de grande solenidade com ladainhas à tarde em que cada um de nós, que tocava metais, fazia vibrar o seu instrumento com altívolo clangor. O largo coalhou-se de barracas de tendeiros e as casuchas, que os padres alugavam às famílias penitentes, regorgitavam de fiéis, como se diria da Estalagem do Perna de Pau numa novela de capa e espada. A cada momento chegavam votos e procissões das desvairadas partes da diocese. Acaso se não celebravam, com a descida da Pomba sobre a cabeça dos Apóstolos, a revinda à terra do sol equinocial e as pompas ressurrectas da Terra?! Tudo eram cantigas nos ares, e nos campos, das aves, dos insectos e das raparigas. A vizinha Sara cantava e recantava a fazer lindos chambres, e na horta, por baixo da camarata, um grilinho arpejava seu arrabil, por ora um arrabil trémulo, com longas síncopes, quase um tanger de ferrinhos por um anjo a cair de sono.
– Vamos, meninos! – veio dizer, obra de meia manhã, o homem saragoçano aos filarmónicos amoravelmente engalfinhados ao Macedo Filho. – A procissão está a formar no Miradouro. Falta só o senhor Abade, e esse não tarda.
Meninos!? – pensaram muitos. – Nós somos alguns meninos? Nós somos músicos. Os músicos que vão ganhar dinheiro. Dobre a língua, amigo de Penude!
Ninguém se permitiu fazer qualquer observação à sem-cerimónia paternal do mordomo encartado. Mas o senhor Macedo, que chegou naquele instante, lhe deu o retruque:
– Vá andando, patrãozinho, que a filarmónica lá vai ter. Todos nós sabemos muito bem qual é a nossa obrigação, sem esquecer a hora.
Dentro de vinte minutos estávamos no Miradouro. Tínhamos descido debaixo de forma ao largo da feira, ordem, à frente homens de pêlo na venta, mulheres barbadas, e raparigas sólidas como granadeiros, ajoujados de rosários de castanhas, que lhes desciam do pescoço aos pés, na cabeça coroas de loureiro e alecrim, flores e palmas ao peito, e um tirso na mão de mimosa florida ou oliveira. E todos marchavam a passo ritmado, com uma gravidade impressionante, certos de cumprir um rito supremo misterioso e propiciador, que lhes comunicava um poder oculto. Tão estranho espectáculo, pelo imprevisto, imponência gloriosa e hermética primitividade, insuflou-nos o mais respeitoso entusiasmo. Luziam ao alto as cruzes antigas com tintinábulos e Cristos de saio entre lanternas, cingidos os vexilários de opa vermelha e roxa, consoante a confraria, e as bandeiras das irmandades com estupendas figuras pulcras ou hediondas, de mãos erguidas a abençoar, ou rabeando no fogo do Purgatório.
Eram duas ou três freguesias, que se haviam agregado para beneficiarem de acompanhamento musical atrás de seus abades, todos gordinhos e de ar afável, no que rendiam as melhores graças a Deus.
A uma pancada do bombo por Flaviano, rompemos com o pase-calle que sabíamos de cor e salteado. O Macedo Filho atirou duas notas de cornetim, claras e vibrantes como duas gaitadas num poldro. E a passo firme, cadenciado posto que moroso, fomos seguindo pálios e cruzes, soprando com denodo e catrapiscando as moças turdetanas, de lanugem no lábio e testa olímpica, arreadas das camândulas de ordem telúrica que eram as panateneias que na forma iam mais perto de nós. Quando a procissão se embrenhou no templo, retirámos tocando ainda uma mazurca que fez atropelar-se à nossa volta o poviléu azabumbado.
Não sei que espórtula cobrou a filarmónica. Competiram-me 200 réis, uma fortuna ao tempo, que derreti em rebuçados.

***

Continuámos a consagrar à música as tardes de sábado e as manhãs de domingo. Macedo vinha num dia e regressava noutro. Nesses dias, um serão apenas, mal-humorado e sonolento, era para o alius, alia, aliud, os triângulos isósceles e escalenos.
O Colégio estava à cunha e já se disputavam os lugares na banda. O Macedinho idolatrado revezava-se com o pai a ensinar-nos, como dizia o P.e Ireneu, a arte de Euterpe. Por fim, era em geral o filho que dava a lição. Mas não se detinha. Ela terminada, ala. Por ali fora no garranito, nem uma seta. Com ele, muito mais do que com o pai, não cabíamos no grande janelão, que olhava a Sul, a esmurrar os narizes contra a vidraça. Nos dias em que havia festa de igreja, compareciam os dois. O jovem Macedo pegava da flauta e, com o pai ao órgão, interpretava Palestrina. E a nave do templo convertia-se num céu aberto.
Uma quinta-feira, dia santo de guarda, apareceu em burros albardados com colchas brancas e em éguas parideiras, rabo de espanejador, a sociedade de Sarçal de Cima. O comendador Apolónio Dias mandava celebrar no Santuário uma missa a instrumental em acção de graças a Nossa Senhora que se dignara salvar a sua consorte, D. Ausenda da Natividade, duma perniciosa que estivera a mandá-la desta para melhor. O espiritismo do brasileiro estava paredes meias com a macumba e a eucaristia. De modo que não era de estranhar de sua parte um voto ao Deus dogmático. Não tinha semelhante rabugem vingado no toro vassoirudo do castanheiro cristão?
Na comitiva brilhavam, sem falar em minha santa mãezinha, a tia Maurícia e a velha ama Isabel do Rosário, o bom do P.e Xavier que foi o celebrante, cada vez melhor escopeta de perdizes e incorrigível batoteiro ao monte, mestre nos saltos a pataco e micos a tostão em casa do Sancho Guedes, os dois Barreiros, o Ceroula-Curta, a professora e o marido, o senhor Santos. Para esse dia auspicioso, a nossa banda, como se abordasse matéria nova, ensaiou-se e tornou-se a ensaiar. O Macedinho filho, para o oficlide, estanciava havia três dias no Colégio. P.e Xavier e Macedo tinham sido contemporâneos em Pinhel, discípulos do reverendo Uriote, aquele célebre padre-mestre que acendia tão bem lume friccionando dois pauzinhos, como batucando com os nós dos dedos nas cabeças de pederneira dos alunos. Foi ao padre que, ao evocar os bons tempos, ouvi a história dos dois canzarrões da serra da Estrela que, na estalagem da Hespanhola, varriam, lambiam e lavavam com língua minuciosa e rápida por detrás da porta, na copa, os pratos que tinham servido a uns hóspedes para em continente servirem a outros.
Foi numa quinta-feira, depois da semana da Pascoela, que o Sarçal veio em peso até o Santuário da Pena. Os padres do Colégio, que aparavam as unhas rentes, ofereceram achas e fogão para aquentar aqueles dos pitéus que desmereceriam saboreados fora do seu ser térmico. Além disso, puseram-lhes à disposição o refeitório, depois de convidado o P.e Ireneu para presidir, e ainda, por direito próprio, o P.e Sulpício, nosso prefeito, que era vizinho e contubernal do comendador.
Pois o melhor da festa foi este ágape em que se imolaram óptimos petiscos cozinhados na Roborosa, onde sobrevivia dos gerais nas Bernardas a tradição da velha culinária, e muita doçaria de Salgueirinho, que guardara paralela pragmática conventual, com receitas de se lhes lamber o beiço. E então de vinho não se fala, que até o senhor Guedes mandou meia dúzia de garrafas do Gerifalto, cógueda arisco e buliçoso, que fazia, deitado no copo, uma chilreada de melros.
O gosto de minha mãe seria ter-me no regaço, se eu já não fosse tão grandinho e tais mimos celestes ao tempo para mim não equivalessem a enfados. Mas eu já perdera aquele frígido retraimento que a Isabel do Rosário chamava desapego e não era mais que a chocada estranheza da transplantação dum mundo espontâneo de liberdade e discrime para aquele regime de férula e culto artificial da pessoa, como empa recurva sobre a espaldeira da latada. A visita de minha mãe começava a ser-me agradável pelo facto mesmo da reacção que se ia operando em mim das boas forças instintivas contra as entorses eclesiástico-escolares. Tinha-se assentado ao fundo da mesa com a irmã e a boa serva, enquanto na cabeceira trocavam brindes afectuosos o P.e Xavier, já um pouco derramado, o P.e Ireneu, e mestre Macedo.
O Macedinho, a certa altura, desertou, e pelo sorriso baboso do velho mestre e uma voz lisonjeiramente indiscreta do P.e Sulpício percebi que todo o tempo que estivesse apartado da discípula, a brasileira, lhe eram séculos. E eu quase odiei a sinhazinha melodiosa que nos roubava a presença do amigo.
Estava-se nos papos-de-anjo, regados a vinho do Ceroula-Curta, digno da galheta dum cardeal, disse o P.e Xavier:
– Ó Macedo, tu havias de me fazer uma missa cantada, aí para umas cinco vozes ou mesmo mais, que depois eu ensaiaria nas horas vagas com os colegas. Não sei se te lembras, eu tinha e tenho uma voz nada despicienda de barítono...
– Voz de estentor – respondeu o maestro. – Não havia como tu para cantar o Alma de Dios. Quando se juntava a ti o Taborda, que era outro portento mas em falsete, acordavam os mortos no cemitério.
Desataram todos a rir. P.e Xavier volveu a certa altura:
– Então és capaz de me fazer essa missa? Tu tinhas bossa...
– É coisa demorada, amigo. Demorada e nem sempre vem a inspiração...
– Ora, ora! Para ti, fazer música é o mesmo que eu rezar os responsos...
– Ou matar meia dúzia de perdizes – interpôs o P. e Sulpício.
– Está enganado, colega! – replicou o P.e Xavier. – Matar uma perdiz exige mais conhecimentos que traduzir uma fábula de Fedro.
Pequena risada, insuficientemente aplauditiva.
– Pois, sim, sim – proferiu Macedo, é provável que desvanecido com a facúndia que lhe atribuíam. – E quem ganha o pão para minha casa? Não sabes que tenho de acompanhar a banda por festas e romarias?!
– Maganão, dizem para aí que o teu rapaz vai casar com a filha do Nepomuceno, brasileiro, herdeira da maior fortuna do concelho…
Macedo sorriu e no seu sorriso blandífluo, a descair no balofo, perpassou, mais que a perspectiva fagueira, a vaidade ou ternura paterna:
– Não sei. Já o ouvi. O meu filho não me diz nada...
– Pois é tudo cheio...
– Será. Ele é que lhe vai dar lições de violino. Ou melhor, deu. Há coisa de duas semanas o senhor Nepomuceno despediu-o. – E acrescentou, vendo-se bem que esta indiscrição era obra do seu temperamento benigno, sem segundos planos, e devida um pouco aos fumos do genuíno Gerifalto: – Constou-me que o pai faz guerra de morte ao casamento, mas a menina chora e bate o punho. Persuado-me que levará a melhor. Quando as mulheres querem…
O P.e Barros era amigo particular do Nepomuceno e teve um aparte que gelou o sorriso nos lábios de Macedo:
– Bem vê, senhor Macedo, o pai não a quer dar a um rapaz, que pode ser muito prendado, mas não tem onde cair morto. Sob este aspecto, devemos concordar que tem a sua razão.
Calaram-se todos e o velho em voz triste e abafada murmurou:
– Meu filho é uma jóia de moço. A menina poderá ser uma santa, uma beleza e valer um condado. Não arranja melhor esposo. Sim, fortuna pede fortuna. O meu filho é pobre, mas é um artista de cara... Todo o instrumento ao fim de certo tempo se lhe torna familiar. Sobretudo é compositor. Só queria que conhecessem as pastorais que para lá tem...
Decorreu mole e larvar um grande silêncio, e P.e Xavier, pegando do copo, em que um velho vinho do Porto, trespassado pela lançada crua da luz, derramava um brilho ofuscante de topázio, proferiu:
– Vamos a beber!
P.e Xavier ergueu o cálice à saúde da senhora de Apolónio Dias, que não comparecera, pelo melindre que havia a observar com a sua convalescença, posto que em bom caminho, louvores a Nosso Senhor, que tudo pode e manda. E, muito derretido e pingueiro, o comendador rompeu aos soluços como se por retrospecção agoirenta a visse no ataúde.
Chocaram-se os cálices e breve as lágrimas de Apolónio se vidraram com os esmaltes cor-de-rosa do sorriso. E P.e Sulpício deitou mais uma rodada.
Reiterou P.e Xavier:
– Posso contar com a missa?
– Talvez... Sabes, requer estudo... É também uma questão de oportunidade... e de vagar... Gostaria de fazer-te papa fina...
– Pois, para missa pataqueira, basta-nos esta, do tempo da Maria Castanha. O ano que vem, temos o prelado de visita pastoral pelas freguesias da diocese. Gostava de apresentar-lhe coisa rija... que galvanizasse os devotos.
– Está bem. Vou tentar...

***

Meses depois, pelas férias da Páscoa, na véspera de regressar à Pena, P.e Xavier chamou- -me a casa e disse-me:
– O Alexandre faz-me um favor? Leva-me este pão-de-ló ao Macedo, o mestre de música...? Queria mandar-lhe umas perdizes, mas tenho andado com uma macaca, que até parece feitiço. Ontem saltou-me um bando, e não deitei uma abaixo. Deve ser das pólvoras que andam falsificadas…
– Levo-lhe o que quiser.
– O homem sempre me mandou a missa. Olhe, anda para ali – e mostrava-me um grande rolo, meio descarapuçado, donde emergiam as notas bem erectas e traçadas a primor nas linhas paralelas da pauta musical. – Chamei cá o Lucas dos Alhais... Não sei se o Alexandre sabe que é o melhor canário que há de Viseu para cima em cantorias de igreja. Dei-a também a ler, em Lamego, ao chefe da orquestra do Seminário. Ninguém lhe meteu dente. Ao fim de muito trabalho, este lá conseguiu solfejar um bocado do hosana. É uma coisa estapafúrdia de todo. O Macedo estava doido quando a compôs. E realmente, segundo me contaram, andava fora de si, empolado de todo. Compreende-se: o filho tinha armado a aboiz à filha do brasileiro, e por pouco lhe escapou. Olé! Foram atrás deles a tempo – a tempo, eu sei lá! – e engavetaram o raptor. Hoje o pai é o mesmo mísero que vive do ofício, por sinal magro nestas terras. Quanto lhe dará o Colégio? Nunca além dos seus dez mil réis por mês, imagino eu. E amarga-os, diga-se a verdade. O filho trazia a pequena do Nepomuceno presa pelo beiço. Mas pelo que ouvi ao meu colega de Aguiar, o P.e Secundino dos Anjos, que foi um dos que se meteram a morigerar a menina e a dissuadi-la de tão tolo fatacaz, vê-a por um óculo. Por modos apareceu um bacharel dos lados de Viseu de boa família, todo pinoca e bonitote, e é ele que há-de acabar por levantar a vaza. Sim, senhor. A missa foi por lá feita no período de euforia, quando o velho Macedo tinha o casamento do filho por favas contadas. Aquele hosana, de facto, parecia cem aldeias pobres a berrar à sorte grande que lhes caísse do céu ou então uma malhada depois de debulhar uma jeira farta. Quer que lhe diga? O maestro de Lamego abundou neste juízo mutatis mutandis:
– Sim, sim, ponha lá que são os vindimeiros no lagar, meio bêbados, ao envasilharem o mosto... Não faz sentido! Com coisas sérias não se brinca. Só queria que o menino Alexandre ouvisse! Não serve... é uma maluqueira pegada! Leva-me o pão-de-ló ao pobre diabo?
– E se não vem tão cedo à Pena?
– O pão-de-ló espera uns dias, que se não estraga. Aqui para nós, com alguma coisa o havia de recompensar.

***

Dois dias depois do meu regresso à Pena, aconteceu vir dar lição de música aos colegiais o velho mestre. Se desprevenidamente o houvesse encontrado num caminho não o teria reconhecido. A pele do rosto, escalada sobre a armadura óssea, revestia-se de tons mortuários, agora duma perfeita lividez à Ribera. Os olhos não lhe derramavam luz. Dei-lhe o pão-de-ló e de princípio não atinou. Quando acentuei o recado, olhou para mim muito fito, e soltou uma casquinada de riso tão cava e sarcástica que me gelou. Quase me senti ofendido. Que queria aquilo significar? Não era mesmo desfazer do obséquio do excelente P.e Xavier, batedor de lebres, batoteiro ao monte, e boa goela a beber e cantar os latins?

***

Desapareceu de Aguiar o Macedinho filho. Para onde foi e não foi, morreu, matou-se, na vila e termo nunca se conseguiu apurar.
O velho continuou a dar-nos lições de música e a reger a banda da terra por festas e arraiais, onde a rogavam a troco dum ratinhado salário. Nunca mais sorriu. Parecia, como nunca, fundido em bronze, a pele escura cada vez mais esticada sobre os malares e encarquilhada nas capelas dos olhos. Ao imediato conspecto, dava mesmo a impressão de defunto que se erguesse da campa. Derreado da coluna, cavavam-se-lhe na face fundas regueiras, dir-se-iam saguão das lágrimas. Passou a interessar-nos muito menos. Nós deixámos de amolgar as ventas contra a vidraça à espreita do seu vulto no caminho velho de Aguiar, entre o Miradouro e o pinheiro manso, lá onde o P.e Sulpício tinha riscado que nascia o Longa. Automaticamente nos ministrava o ensino e se dirigia a nós. E nós ouvíamo-lo tão automaticamente como recitávamos na aula de catequese: Os novíssimos do homem são três, mundo, diabo e carne.
Não se tornara odioso, mas enfadonho. O mecânico das suas lições acabara por imprimir à própria música sonolência e não sei que espírito libertino da desafinação.
Um sábado faltou. Orientou o ensaio o P.e Barros. Percebia tanto de harmonia como de francês, de que se tomara professor encartado. Mas era um dos que tinham a vara. De resto, a banda agora seguia por si, com umas ventosas do P.e Sulpício. Iam-se uns executantes, surgiam outros na sua esteira, e lá avançavam a ritmo inquebrantado. Os veteranos instruíam os pexotes.
Noutro sábado o P.e Barros descaiu em esvaziar o saco das novidades. O velho Macedo enlouquecera. Estava liru de todo. Altas horas, Aguiar acordava a estrondosas volatas musicais. Era ele que subira para o coreto, com o seu cornetim, onde arrastava o compadre, que lhe permanecia fiel, primeira requinta, e tocavam ambos para a Lua, a noite, os ecos adormecidos, até amanhecer. E a voz altanada dos instrumentos parecia repetir a pergunta que a cada passo fazia, em casa e pelos caminhos, a Deus, que, segundo ele, assistia frio e conformado a todas as turpitudes e necedades dos homens:
– Que fizeste do meu filho?
O bacharel felizardo casara e entrara nas graças da menina. Era um par ditoso, e grato o comendador aos amigos, às boas almas, aos padres Barros e Secundino, que haviam contribuído para que a sua herdeira não caísse no precipício, que o mesmo eram as garras de um gajinho que, lá por possuir talento para a música e ser bem-parecido, não deixava de ser um borra-botas, senhor das nuvens e da sombra das paredes.

***

Um dia veio à Quinta do Gerifalto, a convite do Ceroula-Curta, um músico de nomeada. Era simultaneamente um curioso, investigador de velharias e bugiarias douradas. Foram a Sarçal, à quinta do Sancho Guedes, que ele espiolhou de cima a fundo, depois à igreja, donde lhe aconteceu ir dar ao presbitério.
– Que é aquilo ? – perguntou para o bom P.e Xavier face a uma vasta copeira a abarrotar de coisas e loisas.
Aquilo era, além dos apetrechos de caçador, polvorinho, chumbeira, cargas de chifre, invólucros de pólvora, sobretudo a papelada que ali se acumulava da freguesia numa ressaca de muitos anos, sermonários rotos, manuscritos, contas de pé-de-altar, breviários, ordenações da diocese, hinários antigos sem rosto, trinta por uma linha de um levita concomitantemente escopeteiro dos montes e cultivador de duas grades de terra.
– E isto ? – e levantou a mão para uma folha de música.
– É quanto resta duma missa cantada, feita por um doido. O resto foi-se em buchas para a espingarda.
O visitante cravou os olhos na pauta e mentalmente pôs-se a lê-la. Era o Hosana.
Depois de lê-la uma vez, releu-a, e por entre dentes se pôs a trauteá-la. E quantos ali estavam viram que, pouco a pouco, o maior exaltamento o empolgava e arrebatava para fora de si.
– Mas é genial o que aqui está! – exclamou ele. – Quem é o autor? Onde está o resto, senhor Abade?
P.e Xavier referiu, desdenhando, quem era o autor. Só restava aquela página. Prestava? Não estava a mangar? Pois ninguém lhe dera importância, mas ninguém.
– Este hosana é estupendo! – tornou o musicólogo.
– É Wagner, mas do bom, o que aqui está. Que crime o senhor praticou, padre! Este fragmento é assombroso. As vozes vão num crescendo da mais original e maravilhosa polifonia e parece que tudo estremece e delira: as almas, os corpos, o céu e a terra. Os anjos saem de seu êxtase e cantam e dançam com os homens e os elementos. Morreu o autor? Que me diz? Morreu doido e foi sempre um pobre de Cristo!? Só assim se compreende. Oh, que pena não ter podido esse homem realizar-se, ter materializado, ou melhor dado asas a seus sonhos, que eram admiráveis! Como se chamava ele?
– Macedo.
– Só?
– Não me lembro do resto do nome.
– Macedo, Macedo anónimo, Macedo heróico, Macedo santo! – rompeu num estampatório, meio desvaire, meio romantismo, próprio dos seres, como sejam os poetas e músicos, que andam em desequilíbrio acima das coisas vulgares do mundo, estampatório que emparveceu o padre e seus familiares: – Ajoelho perante a tua alma errabunda e maldita! Mais uma que se afogou no pantanal! Vou erguer-te uma ara entre os ídolos e demiurgos que venero e que imploro nas horas de silêncio e dúvida! Ignorado artista, salve!

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