Ainda a propósito do "Idades Cidades Divindadades" do Mia Couto, o seu segundo livro de poesia recentemente lançado, e que não pude deixar de cruzar com outro livro, em cima da mesa de cabeceira, a "Poética da Música na forma de seis aulas", de Stravinsky.
É assente que a característica mais marcante de Mia Couto é a transformação / criação da língua. O seu reinventar de palavras e a modelagem que faz do português enriquece-nos e prova, também, que esta língua é tão flexível como outras. Por vezes tratamo-la como peça de museu...
Mas o seu reinventar da língua é também uma nova linguagem, que o autor assume: num novo país (que o escritor tem afirmado ser mais novo do que ele próprio) tudo está em branco, inclusivamente a linguagem, a referência a si próprio. Este branco de possibilidade tem sido preenchido pela obra de Mia Couto. Nunca mais será possível pensar ou referir Moçambique sem que se o faça através das palavras de Mia Couto. Este é um nomear primeiro, o dar nome às coisas, um verdadeiro privilégio num mundo em que tudo já foi dito.
Peixes
Com violência
estilhaçou o aquário.
Os peixes
pratearam desesperos pelo mármore.
Como as palavras
de um obrigatório poema de escola:
livres,
dispondo de todo o ar
e morrendo de asfixia.
(Mia Couto)
Este um dos poemas que preferi e que me fez saltar para a angústia da influência dos que criam novas linguagens. Escapar à angústia da influência, escapar a todas as linguagens pré-existentes mas também fazer parte de uma época que cortou com o passado de um modo radical. Depois dos cortes do modernismo, deixou de ser possível não ser totalmente original. Depois de tudo ter sido já dito, ser totalmente original assume proporções dantescas...
Em "Poetics of Music in the form of Six Lessons", (no link o texto integral da excelente Open Library) Stravinsky afirma:
"Individual caprice and intellectual anarchy, which tend to control the world in which we live, isolate the artist from his fellow-artists and condemn him to ap- pear as a monster in the eyes of the public; a monster of originality, inventor of his own language, of his own vocabulary, and of the apparatus of his art. The use of already employed materials and of established forms is usually forbidden him. So he comes to the point of speaking an idiom without relation to the world that listens to him. His art becomes truly unique, (...) "
"It is a fact of experience, and one that is only seemingly paradoxical, that we find freedom in a strict submission to the object: "It is not wisdom, but fool- ishness, that is stubborn," says Sophocles, in the mag- nificent translation of Antigone given us by Andre Bonnard. "Look at the trees. By embracing the movements of the tempest they preserve their tender branches; but if they rear against the wind they are carried off, roots and all."
Let us take the best example: the fugue, a pure form in which the music means nothing outside itself. Doesn't the fugue imply the composer's submission to the rules? And is it not within those strictures that he finds the full flowering of his freedom as a creator? Strength, says Leonardo da Vinci, is born of constraint and dies in freedom. "
Claro que não concordo com esta última frase, mas Stravinsky afirmava então a criação de novas linguagens no contexto da história que o precedia, o que não deixa de ser engraçado tendo em conta que poucos compositores, como ele, cortaram com as linguagens que o precederam. (Aqui, para ouvir "The Rite of Spring") Por outro lado, ele anteviu o fragmentar actual e o esbater dos modelos. Chama-se arte a tudo quando talvez nada o seja já.
Refrescante é retornar a Mia Couto e ao seu pecado original: o de nomear o que ainda não tem nome e o de olhar o que ainda nunca foi visto. Sair da metrópole e voltar à raiz mais profunda da terra e do sentido de simplesmente ser.
O Urbano visita a savana
Olhou a paisagem
e os seus infinitos.
Depois de inspirar fundo,
perguntou:
- A imagem está óptima.
Mas, não tem legendas?
(Mia Couto)
light gazing, ışığa bakmak
Saturday, November 3, 2007
A criação da linguagem e a linguagem da criação
Publicado por Ana V. às 8:42 AM
TAGS Biblioteca de Babel
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1 comment:
Acho que se pode ser profundamente original e escrever o que já foi escrito. A originalidade, na minha opinião, tem a ver com a criação de uma escrita própria, já afastada das influências.
No fundo, aquilo que Harold Bloom referiu como os Satãs da Literatura, em contraposição com os Adões que ainda não ultrapassaram a angústia da influência.
E Mia Couto não é só a voz de Moçambique, é a voz de África.
beijo
jorge
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