light gazing, ışığa bakmak

Tuesday, November 20, 2007

"De onde vem a escrita?" de Richard Ford



Este artigo encontrei-o na clássica Granta, revista literária. Resolvi traduzir, com todos pecados de uma tradução amadora face a um dos melhores escritores norte-americanos da actualidade. Felizmente, é sempre preferível e possível retornar ao original, aqui.

De onde vem a escrita?
Richard Ford

De onde vem a escrita? Já fui muitas vezes culpado de tentar responder a esta questão. Fi-lo, suponho, dentro do espírito que André Breton tinha em mente quando escreveu: Os nossos cérebros são amolecido pela mania incurável de querer transformar o desconhecido em conhecido. Eu já o fiz em fóruns públicos depois da apresentação de livros, em painéis de discussão com colegas a passar pelas brasas, em frente a fileiras de estudantes de risos afectados, por sugestão de jornalistas cruéis e cínicos em quartos de hotel cá e no estrangeiro. E creio poder dizer honestamente que eu nunca me colocaria esta questão a mim próprio se não houvesse quem parecesse interessado nela, ou se as minhas fortunas financeiras não parecessem (correcta ou incorrectamente) ligadas a tal especulação. Eu devo ter pensado que sabia a resposta, ou que não precisava de a saber. No entanto, uma vez colocada a questão, tenho-me interessado ao longo dos anos nas respostas que tenho engendrado - o que é o mesmo que dizer, sonhado - do mesmo modo que me interesso pelo progresso de qualquer pedaço de ficção que eu esteja a escrever. Isto, ao fim e ao cabo, é o que se faz, ou pelo menos o que eu faço quando escrevo ficção: escolho uma coisa remota ou que eu não tenha pensado antes, alguma coisa pela qual eu sinta uma espécie de yen sem palavras, e depois vejo o que posso sonhar acerca dela ou à sua volta que seja interessante ou divertida para mim, esperando que dando-lhe sentido com palavras eu a torne interessante e importante para outra pessoa.

Muitos escritores de muitos séculos já franziram as sobrancelhas com esta pergunta - de onde vem, isto tudo que escrevo? Uma parte importante da resposta de Wordsworth por exemplo foi que '...boa poesia é o fluir espontâneo de sentimentos poderosos'. E eu não vejo razão para não tentar também a minha sorte na esperança de conseguir chegar ao ou perto do fundo deste assunto e possivelmente ajudar a extinguir a literatura de uma vez por todas - já que isso parece ser onde conduz essa questão: vamos lá explicar a escrita e transformá-la num bonito teorema, como um problema teimoso na física do plasma, para podermos depois esquecer isto e voltar a ver o Seinfeld na televisão. E se isto falhar, posso pelo menos dizer qualquer coisa espirituosa ou atraente que faça o ouvinte ou o leitor procurar o livro que verdadeiramente me interessa - o que acabei de escrever e que espero que vocês adorem.

Pode ser que esta investigação continue viva na América em parte devido a essa principalmente instituição americana, o curso de escrita creativa - do qual eu sou um graduado bona fide, e sobre o qual os europeus gostam de torcer o nariz. A instituição tem muitas virtudes - o tempo para escrever a mais preciosa. Mas também tem vários defeitos, um dos quais o benefício ainda por demonstrar de estar constantemente rodeado de colegas e compatriotas que pensam de um modo semelhante a falar do que estamos a fazer, como se a companhia melhorasse naturalmente o trabalho importante de uma pessoa à medida que ela o faz. Como fazemos o que fazemos e porque o fazemos pode ser precisamente um daqueles assuntos em que um certo tipo de pessoa mais ansiosa não pode deixar de tropeçar numa altura da vida em que escrever alguma coisa de todo é uma preocupação, e quando o conjunto da obra é pequeno e não muito distinto da própria pessoa privada, e quando se percebe que aquilo que se escreve não é o assunto mais fascinante do mundo para discutir com uma bebida. Entre os novatos dedicados, o grande assunto da proveniência pode bem ser tudo o que existe em comum e que passará por uma especulação abstracta de natureza desinteressada.

Outra força sócio-literária que claramente mantém o tópico vivo é que entre muitas pessoas que não são escritores existe ocasionalmente uma leve crença de que os escritores são pessoas especiais, dignatários de algum tipo, responsáveis por um interior importante perto do qual qualquer pessoa seria sábia, como um modo de se conseguir chegar perto de uma potente essência da vida. As perguntas sobre como, porquê, etc., tornam-se apenas genuflexões frente ao meio. E os escritores, sendo normalmente pouco dotados de amor-próprio e desejando eternamente que mais atenção seja dada ao seu trabalho, estão muitas vezes prontos para se tornar o expoente da sua obra, se não o seu próprio avatar. Lembro-me da história de um escritor que eu conheço que, dizem, depois de mostrar a um visitante interessado a sua secretária de onde se avistava o Pacífico, murmurou enquanto entravam em bicos de pés dentro escritório quase-sagrado e cheio de sol, "Bom, é aqui. É aqui que faço magia".

Nada de novo nisto: apenas outra instância do supor que uma aproximação ao escritor vai revelar a coisa escrita de um modo mais completo, mais verdadeiro; ou então, trata-se do velho erro de confundir quem faz com a coisa feita — um objecto que se calhar até tem alguns pós mágicos, quem sabe?

Considerar um conjunto de ligações mecânicas que podiam ter trazido um texto escrito do nada, o "sítio" em que estava antes de eu o ter escrito, até à sua condição final como livro que eu espero que vocês adorem, transmite mesmo aquela visão romântica segundo a qual a invenção artística é uma espécie de mágica do acaso, que não pode ser explicada adequadamente do mesmo modo que, digamos, um comboio que chegue a Des Moines pode ser explicado se seguirmos os carris, as mudanças e os túneis desde a sua origem em Paducah.

Pode-se, e os académicos fazem-no — tentar seguir o rasto de algumas ligações aparentes desde a obra acabada até à mente e à página originais, em branco, e ir até antes disso ('Ele usou o nome do pai para o assassino do machado ...hmmm; 'ela sofreu de glaucoma tal como a irmã abandonada que depois foi para freira carmelita, como se pode então dizer que o diabo da história não é sobre a cegueira moral?') Mas claro que este procedimento é famosamente pouco fiável e por vezes até mesmo impertinente, já em primeiro lugar (e nem precisa de haver um segundo lugar) tais investigações começam e tomam como garantida a existência de Des Moines, enquanto que para o escritor (e eu já deixo para lá esta coisa do comboio) des Moines não é só uma cidade mas uma palavra que não tem só de ser encontrada, tem de ser conjurada do nada. Na verdade, a palavra pode nem ter sido Des Moines logo para começar — pode ter sido Abilene ou Chagrin Falls — mas tornou-se Des Moines porque o escritor deixou inadvertidamente escapar Abilene da sua mente, ou porque Des Moines tinha aquele ditongo interessante e porque soava bem e afrancesado na página, enquanto Abilene tinha aquelas três sílabas pesadonas, e já havia uma canção idiota sobre ela. E ainda por cima, há pelo menos duas Abilenes, uma no Texas e outra no Kansas, o que é confuso, e nenhuma tem serviço de comboio.

Está-se a ver o que quero dizer: as ligações reais podem nunca ser recuperáveis porque só existem naquela noite interestelar obscura e silenciosa onde o impulso, a associação livre, o instinto e o erro existem. E mesmo que eu estivesse a tentar explicar de um modo fiel as conexões etiológicas de um excerto que eu tivesse escrito, ainda assim mentia sobre elas, ou podia estar simplesmente errado, porque me esqueci. Mas se em qualquer caso eu tivesse de inventar qualquer coisa, como os académicos fazem — embora não exactamente da mesma maneira que os escritores pois estes começam, como eu já disse, do nada. Lembro-me uma vez de um crítico favorável a um livro que eu tinha escrito ter salientado a minha escolha de adjectivos, que lhe parecia surpreendente e expansiva e que beneficiava a história. Uma frase de que ele gostava particularmente continha uma expressão em que eu me tinha referido aos olhos de uma personagem como "velhos": "Ele olhou para ela com um olhar velho" ('He looked on her in an old-eyed way.'). Naturalmente fiquei satisfeito por ter escrito uma coisa de que uma pessoa gostava. Mas, um dia mais tarde quando empacotava alguns manuscritos no sótão, os meus olhos caíram por acaso sobre aquela página e sobre a tal expressão elogiada, "olhar velho", e reparei que de algum modo nas voltas de redactilografar que precediam a versão final de um livro nos dias antes dos processadores de texto, a expressão original e bem híbrida "olhar frio" (cold-eyed) tinha por acaso perdido o 'c' e tinha-se tornado "olhar velho", mas ninguém deu por isso pois ambas faziam sentido.

Esta era a minha grande escrita, admitidamente mais pequena, e fez-me lembrar a história de um homem do Alabama que não entendia como é um termo mantinha frias a comida e as bebidas frias e as quentes, sempre quentes, e expressava a sua admiração numa frase semelhante ao título deste ensaio: "Como é que ele sabe?"

Quem tenha já escrito um romance ou uma história ou um poema e que tenha já tido a oportunidade de depois falar dele com um leitor entusiasmado ou simplesmente interessado sabe que a impressão incómoda começa quando o leitor começa a tentar descobrir as ligações que relacionam a história a uma 'suposta' fonte, quer como modo de clarificar o modo como a vida se transforma em arte, ou então tentando apenas diminuir um acto de criação a um problema de design industrial.

No meu caso, esta pergunta centra-se frequentemente no poderoso tema das crianças, ou mais persecutoriamente, em como é que eu consigo escrever sobre crianças desta e daquela maneira sem ter tido nenhuma eu próprio (a minha mulher e eu não tivemos filhos).

É muitas vezes surpreendente para seja quem for que estou a falar que eu possa escrever de um modo persuasivo sobre crianças: embora a surpresa seja muitas vezes expressa não como puro deleite mas numa espécie de tom suspeito cujo espírito é ou que eu tenho filhos (noutro país, quem sabe) e não o quero admitir, ou que alguém numa posição de autoridade deve vir e olhar mais de perto para as minhas pequenas invenções para se certificar que são mesmo tão bem desenhadas quanto parecem.

Eu por mim tento ficar bem disposto com estas perguntas. Um estranho, afinal, leu ou parece ter lido partes de um livro que eu escrevi e ter ficado sensibilizado com ele, e eu fico sempre agradecido por isso. Ele ou ela podiam ter estado a ver o Seinfeld. E então o que tento fazer é sorrir e dizer qualquer coisa entre dentes sobre o facto de eu próprio ter sido criança há muito tempo, e se isso não funcionar digo que há crianças por todo o lado para os estudiosos analisarem, e que o meu trabalho jamesiano, afinal, é ser bom observador. E finalmente se tudo isso não chegar digo que se fosse tão difícil escrever sobre crianças eu de todas as pessoas não o conseguia fazer porque não sou assim tão melhor do que os outros.

Mas a verdade — a que eu sei ser verdade — é que mesmo que eu tenha sido criança, e embora exista mesmo uma fornada de miúdos por todo lado para serem estudados como ratos de laboratório, e mesmo que eu claramente não seja a pessoa mais esperta do universo, o que eu escrevo sobre crianças é mesmo inventado. Invento-as a partir de pedaços de linguagem, das minhas memórias, das histórias nos jornais, daquilo que ouço os meus amigos dizerem dos seus filhos, daqui e dali, e às vezes de mesmo nada mas só da vontade prazenteira de imaginar alguma coisa que seja interessante para uma criança e não para um adulto ou para um astronauta ou para um cavalo, após o que a criança, ficcional, começa a tomar forma na página como um gesto moral e intencional para um leitor. "No Natal só quero saber a diferença entre isto e aquilo", disse o pequeno Johnny, que só tinha dez anos mas que começava já a mostrar que precisava de uma disciplina mais firme." Atenção, nasceu uma criança.

Ocasinalmente, se for empurrado ou chateado aborreço-me e digo: eu invento estas pestes, é o que é. Agora ponham-me em tribunal. Mas o auto-controle ocasional faz-me quase sempre regressar às minhas explicações. Qualquer coisa mais delicada em mim simplesmente não quer dizer: "São coisas inventadas, estes personagens, não podem seguir-lhes o rasto como coelhos até às suas tocas. Não se escondem em tocas". É como se defender a invenção e a sua eficácia frágil fosse indelicado, um pouco desagradável. E mesmo que defender a invenção não faça mal ou sequer manche as maravilhas da invenção (todos sabemos que os romances são inventados; faz parte do nosso prazer sabê-lo), mesmo assim sentimo-nos pouco à vontade fazendo-o - não como um mágico que relutantemente mostra a um idiota como tirar uma moeda da sua própria orelha, mas mais como um padre que, depois de ouvir uma pequena mas humilhante confissão de um amigo, deixa o amigo ir sem castigo para andar rapidamente em frente e para assuntos mais condignos.

Wallace Stevens escreveu uma vez que 'na idade da descrença ... pertence ao poeta fornecer as satisfações da crença à sua medida e no seu estilo'. E isso inclui o que eu sinto em relação à invenção — personagens inventados, paisagens inventadas, corações quebrados e as reparações subsequentes inventados. Creio que há coisas inventadas importantes que resistem à precisão do seguir o rasto e que é uma benção que as haja, já que a nossa aceitação delas na literatura (agindo como um substituto de crenças menos aceitáveis) sugere que para cada problema humano, cada cul-de-sac, insolúvel, para cada desespero, há uma hipótese de conjurarmos uma melhoria — uma Des Moines, onde antes tinha estado uma Abilene desanimada.

Frank Kermode escreveu há trinta anos no seu maravilhoso livro "The Sense of an Ending" que 'não é que conheçamos o caos, mas estamos rodeados por ele, e equipados para a co-existência com ele apenas pelos nossos poderes ficcionais'. Para mim, não acreditar na invenção, nos nossos poderes ficcionais, acreditar que tudo é passível de ser explicado, que o coelho tem de ficar na sua toca à espera é (porque está muito errado) uma certa receita para as rajadas da desilusão, e uma pequena mas desnecessária reprimenda pela capacidade da humanidade de imaginar o que podia ser melhor e, então com esperança, procurá-lo.

1 comment:

bluewater68 said...

Uma estrela anã branca é uma estrela com massa semelhante à do nosso Sol, mas que já consumiu todo seu combustível nuclear, e implodiu.
Este blogue é uma verdadeira Supernova, que ofusca qualquer SOL que se vai transformando numa anã branca.
Isto deve ter sido inspiração do Ford.

 
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