(Frangipani Tree, imagem de Russel Wong)
A escrita dele, Mia Couto, é a voz de um novo país, a voz de um africano que não precisa de o ser (quem quer ver o bilhete de identidade?) e uma ponte de apaziguamento. O criador-subversor da língua tem de ser também um inventor da linguagem de um país que a não tinha. Teria na voz, menos na escrita. De muitas formas, menos em português, a um tempo mãe e a outro carrasco. Viver com essa dualidade, uma violação dentro da própria casa. Por vezes penso que a responsabilidade é grande demais, o projecto babilónico. Mas as suas personagens arranjam maneira de sacudir a água e as culpas. A história explicada a idiotas.
Um excerto de "A Varanda do Frangipani" .
"Nunca tínhamos falado assim. Domingos Mourão, o nosso Xidimingo, se levantou e, aos tropeços, se atirou contra mim. Os dois brigámos, convergindo violências. O branco me solavanqueou, parecia transtornado em juízo de bicho. Mas a luta logo se desgraçou, desvitaminados o pé e o soco. Só os nossos respiros se farfalhavam nos peitos cansados. Os dois nos sacudimos, desafeitos:
— Você sempre quer mandar em mim. Sabe uma coisa: colonialismo já fechou!
— Não quero mandar em ninguém...
— Como não quer? Eu nos brancos não confio. Branco é como camaleão, nunca desenrola todo o rabo...
— E vocês, pretos, vocês falam mal dos brancos mas a única coisa que querem é ser como eles...
— Os brancos são como piripiri: a gente sabe que comeu porque nos fica a arder a garganta.
— A diferença entre mim e você é que, a mim, ficam cabelos no pente enquanto a você ficam pentes no cabelo.
— Cala, Xidimingo. Você é um arrota-peidos.
O velho branco riu-se sozinho. Depois, se ocupou em ajeitar o corpo. Lhe doía a garganta como um torcicolo em pescoço de girafa. Ficou um tempo imóvel, olhos semicerrados. Parecia desmaiado.
— Você está a respirar, Mourão?
— Ouve, Nhonhoso: quer apanhar mais outra vez?
— Você é que apanhou maningue, seu velho branco...
— Deixa-me descansar um bocado e já lhe despacho uma boa murraça.
— Para me dar um murro você precisa descansar um século...
Nos olhámos sérios. De repente, ambos desatámos a rir. Batemos as mãos, chapámos as palmas, em acordo. Aquilo havia sido briga de disputar gafanhoto, bicho sem fruto nem carne. Então, lhe disse:
— Eh pá, Xidimingo, estou-lhe a agradecer bastante.
— Porquê?
— Charra! Eu quase ia morrer sem bater um branco.
— Chamas a isto bater? Recebi foi carícias...
— Nada. Lhe arreei umas autênticas porradas."
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O livro todo, inteirinho, pode ser descarregado aqui. Em word.
light gazing, ışığa bakmak
Friday, December 14, 2007
Colonialismo já fechou!
Publicado por Ana V. às 12:49 AM
TAGS Biblioteca de Babel, Mia Couto
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