Não, não fui eu quem escreveu (ai se fosse...), é um texto do livro "Lisboa, Livro de Bordo" de José Cardoso Pires. Queria lembrar-me de um adjectivo para pôr atrás de "texto", mas nenhum servia. Na minha cidade.
De bar em bar (Fotograma I)
«Fazer horas», dizemos nós quando não temos outra coisa para fazer. Pausa de espera ou vazio imprevisto, para isso há lugares de recurso, que o digam os frequentadores dos bares, por exemplo, mas aí o tempo morto acaba muitas vezes em tempo vivo e pode até deixar de ser de espera. Na verdade, só o bebedor desprevenido acredita em enganar as horas, quando as horas é que nos enganam muitas vezes, contando a passo certo e batido um tempo para lá dos números. Por alguma razão, em lisbonense cerrado, se chama ao relógio «caranguejo», que é um animal de marcha falsa, fazendo que anda para trás mas avançando para o lado para que a gente não lhe apanhe o sentido.
Em Lisboa, pelo relógio dum azulejo do bairro da Graça, é possível concluir que naquele sítio jamais se chegará ao meio-dia ou à meia-noite: onze e trinta e cinco, por mais voltas que o mundo dê os ponteiros não saem dali. Mas no elevador de Santa Justa o tempo nem sequer está parado, está cego, cego de todo. Pelo menos é o que diz o relógio que os calceteiros lhe desenharam à entrada e que, apesar de numerado com rigor, não distingue as horas dos minutos porque os dois ponteiros são do mesmo tamanho. Mas desnorteante só o do British Bar do Cais do Sodré que roda em sentido contrário e marca horas pontualíssimas. Esse é que sim, esse é que, avançando em marcha atrás, é um «caranguejo» no verdadeiro sentido do vocabulário lisboeta.
Alain Tanner serviu-se dele n'A Cidade Branca, a curraleira que ele traduziu por Lisboa depois de a pintar toda de sujo num filme de cais da insónia em mau olhado mourisco. Muito provavelmente viu o relógio do British Bar como uma metáfora do saudosismo lusitano, os franceses culturais são muito capazes disso e os portugas à la page ainda lhes ficam agradecidos. Tempo a contar para trás, nostalgias, exotismos: esses efeitos nunca falham quando olhados com complacência pelos da arte civilizada. (Se o meu Sebastião Opus Night, sempre a desmarcar-se de Lisboa, alguma vez tivesse encarado o relógio ao revés pela semiótica do lumière da cidade nula, diria, tenho a certeza, que cá no burgo até o tempo avançava em trompe-l'oeil.)
Para os clientes do British Bar aquela curiosidade não passa de um gracejo de boas-vindas. Desde os anos muito idos em que Bernardo Marques e Carlos Botelho aportavam ali até aos incertos dias de hoje lá estou eu, sempre que calha, com um copo de ginger-beer à pressão a olhar aqueles ponteiros que andam para trás e avançam no tempo.
Pois é. No British Bar os anos passam, as gerações mudam, vêm literatos, vêm contrabandistas, vêm estivadores à mistura com meninas de civilização, mas o espírito e a cor local mantêm-se inconfundíveis. Tem um sabor a cais sem água à vista, este lugar.
Entra uma vendedeira de lotaria. Há muito que eu a conheço dos bares destas redondezas e olho-a como quem a recorda em boazona, seios para a frente, meia de seda e salto alto. Vejo-a passar por mim, e pela maneira como passa deixa-me recados. «Tu praticaste a fornicação mas isso foi noutro país», é o que ela me diz, embora sem usar de palavras porque as palavras pensei-as eu e são do T. S. Eliot.
«Tu praticaste / A fornicação; mas isso foi noutro país / E além do mais a mulher morreu.» Essa do Eliot cá me fica. [Não propriamente do Eliot, esta citação é de Marlowe, em "The Jew of Malta": "Thou hast committed --Fornication: but that was in another country,And besides, the wench is dead.", mas é utilizada por T. S. Eliot em "Portrait of a Lady".]
Não há dúvida, os bares são realmente navegações pessoalíssimas. Do outro lado da rua tenho O Americano que, como figura de proa, não ostenta um relógio de intrigar mas um possante urogalo embalsamado num altar de parede. Em tempos foi um balcão de suevos, daneses e britânicos, funcionários, todos eles, das agências de navegação do Cais do Sodré, e aqui, hoje que o dia está de feição, torno a tropeçar noutro poeta: Pessoa. O Pessoa, sempre o Pessoa, o Pessoa, o nosso fadário. Também ele, nos gloriosos anos trinta, frequentava O Americano às horas litúrgicas dos morning drinkers. Navegações, é o que eu digo. Nos bares do Cais do Sodré ninguém está livre de apanhar com um poeta à deriva pela proa.
Hoje O Americano perdeu lastro, balança à tona dum passado de bebedores em inglês, reflectidos no gin tonic ou no sling. Está quase em seco, como se vê, sem esses navegantes de balcão; e a emoldurar a sua solitude exibe calendários de ship-chandlers com navios de grande curso a fumegarem nas paredes.
Do livro "Lisboa, Livro de Bordo"
O British Bar no blogue Luminescências, muito bom.
light gazing, ışığa bakmak
Wednesday, December 26, 2007
"De bar em bar (fotograma I)"
Publicado por Ana V. às 9:19 PM
TAGS Biblioteca de Babel
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2 comments:
De vez em quando, ainda passo no British Bar.
um beijo
jorge
Olá
Creio que o americano já fechou; e no British o pessoal continua a ser extremamente simpático.
O Cardoso Pires tambem faz falta.
Boa passagem de ano e bom 2008
FCC
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