Revisão, revisões. D'O Estrangeiro, Camus. Edição dos Livros do Brasil, data não encontro mas eu comprei-o em 90 porque queria uma cópia, a minha mãe sempre a reclamar que eu lhe tirava os livros e nunca mais devolvia. Queria tomar notas e sublinhar e pôr pontos de exclamação e marcá-los com guardanapos de papel de café. No liceu enchia as páginas de notas minúsculas a lápis, por todo o lado, na Faculdade a mesma coisa, a páginas tantas e tantas. Por acaso neste não escrevi nada. Nos anos oitenta o escrevinhar era mais compulsivo. Precisamente nove meses depois de comprar este livro, nasceu a minha filha. Não que me lembre, a única coisa que escrevi no livro, a caneta, foi o mês e o ano em que o comprei. Esta edição d'O Estrangeiro foi traduzida por Rogério Fernandes, informação que aparece minúscula, na página lateral. O árabe aparece umas vezes com minúscula, outras com maiúscula. Bem que a Cotovia lhe podia pegar. Por outro lado, têm um certo encanto estas edições baratíssimas de grandes livros.
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Distinguia, de longe, a pequena massa sombria do rochedo, rodeado de uma auréola formada pela luz e pela poeira do mar. Pensava na nascente fresca que havia por trás do rochedo. Desejava reencontrar o murmúrio da água que dela brotava, desejava fugir ao esforço, às lágrimas de mulher, desejava, enfim, reencontrar a sombra e o repouso. Mas quando cheguei mais perto, vi que o árabe de Raimundo voltara ali.
Estava só. Descansava de costas, as mãos debaixo da nuca, a cabeça nas sombras do rochedo e o resto do corpo ao sol. O seu trajo fumegava de calor. Fiquei um pouco admirado. Para mim, era história antiga, e viera para aqui sem pensar no caso. Logo que me viu, levantou-se e meteu a mão na algibeira. Eu, muito naturalmente, agarrei no revólver de Raimundo, dentro do casaco. Então, o árabe deixou-se cair outra vez para trás, mas sem tirar a mão da algibeira. Eu estava bastante longe dele, a uns dez metros de distância. Adivinhava-lhe por instantes o olhar, entre as pálpebras semicerradas. Mas a maioria das vezes a imagem dele dançava diante dos meus olhos, na atmosfera inflamada. O barulho das vagas era ainda mais preguiçoso do que ao meio-dia. Eram o mesmo sol e a mesma luz, que se prolongavam até este momento. Havia já duas horas que o dia deitara a sua âncora neste oceano de metal fervente. No horizonte, passou um pequeno vapor. Adivinhei-lhe a mancha negra com o canto do olho, pois não cessava de fitar o árabe.
Pensei que me bastava voltar para trás e tudo ficaria resolvido. Mas atrás de mim, comprimia-se uma imensa praia vibrante de sol. Dei alguns passos para a nascente. O árabe não se moveu. Apesar disso, estava ainda bastante longe. parecia sorrir, talvez por causa das sombras que se lhe projectavam na cara. Esperei. A ardência do sol do dia em que a minha mãe fora a enterrar e, como então, doía-me a testa, sobretudo a testa e todas as suas veias batiam ao mesmo tempo debaixo da pele. Por causa desta queimadura que já não podia suportar mais, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estúpido, que não me iria desembaraçar do sol simplesmente por dar um passo em frente. Mas dei um passo, um só passo em frente. E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a navalha da algibeira e mostrou-ma ao sol. A luz reflectiu-se no aço e era como uma longa lâmina faiscante que me atingisse a testa. No mesmo momento, o suor amontoado nas sobrancelhas correu-me de súbito pelas pálpebras abaixo e cobriu-as com um véu morno e espesso. Os meus olhos ficaram cegos, por detrás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. Esta espada a arder corroía-me as pestanas e penetrava-me nos olhos doridos. Foi então que tudo vacilou. O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte, onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro leves pancadas, à porta da desgraça.
De O Estrangeiro, Camus
light gazing, ışığa bakmak
Saturday, January 26, 2008
o equilíbrio do dia
Publicado por Ana V. às 9:53 AM
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1 comment:
I`m alive
I`m dead
I`m the stranger
Killing an Arad
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