"Aí vai a dona da pensão: um mastodonte. Acaba de sair por baixo da minha janela, carregada de gorduras e de lutos, e calculo que de boca aberta para desafogar o seu trémulo coração. Atravessa a rua perseguindo a criada-criança, como é hábito. Entra no café: mal cabe na porta. Tem cabecinha de pássaro, dorso de montanha. E seios, seios e mais seios, espalhados pelo ventre, pelo cachaço, pelas nádegas. Inclusivamente, os braços são seios atravessados por dois ossos tenríssimos. «Jesus, o que são as coisas», queixa-se ela a todo o momento.
Com um corpo assim não podia deixar de ser uma criatura sofredora, maternal. Vemo-la sentada, formiga-mestra duma hospedaria de caçadores: toda ela transborda generosidade. Chegamo-nos mais: verificamos que está erigida sobre uma fina camada de cheiro à flor do soalho, o modesto cheiro a sabão amarelo, e começamos a perceber uma música gentil lá no alto - a sua voz. Escutemo-la sem pressas, é o som duma alma sensível e resignada. E não faltarão pequenas delicadezas, pequenas gotas de orvalho, a brindar quem se abeirou dela. Ainda há pouco, quando me veio apresentar os cumprimentos, teve de me trazer a Monografia aqui presente:
«Espera, da outra vez o senhos escritor lia muito este livro, e pode ser que ainda lhe interesse. Deixe-mo levar, disse eu. E aqui tem, se faz favor.»
Agradeci. Era um gesto, como se vê, uma pequenina gota de orvalho destilada de um corpo volumoso e paciente."
em O Delfim
José Cardoso Pires
Passando em velocidade pelas mulheres nas páginas de Cardoso Pires. Fiquei fascinada pelo olhar de quem escreve. Longe, mais perto, mais perto até a trespassar, vendo-lhe as entranhas. Assim se olha quando se olha mais fundo, a gentileza do escritor.
light gazing, ışığa bakmak
Thursday, February 28, 2008
de mastodonte a gota
Publicado por Ana V. às 6:08 PM
TAGS Biblioteca de Babel, Mulheres, Perseguindo as mulheres de Cardoso Pires
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2 comments:
é o que eu já disse:
o maior escritor de Portugal e alguns arredores.....
Trout
Uma boa noite. De fugida....
Tozz
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