light gazing, ışığa bakmak

Monday, February 18, 2008

morri fora do meu lugar, Mia Couto

Todas estas atropelias sucederam porque morri fora do meu lugar. Trabalhava longe da minha vila natal. Carpinteirava em obras de restauro na fortaleza dos portugueses, em São Nicolau. Deixei o mundo quando era a véspera da libertação da minha terra. Fazia a piada: meu país nascia, em roupas de bandeira, e eu descia ao chão, exilado da luz. Quem sabe foi bom, assim evitado de assistir a guerras e desgraças.
Como não me apropriaram funeral fiquei em estado de xipoco, essas almas que vagueiam de paradeiro em desparadeiro. Sem ter sido cerimoniado acabei um morto desencontrado da sua morte.
Não ascenderei nunca ao estado de xicuembo, que são os defuntos definitivos, com direito a serem chamados e amados pelos vivos. Sou desses mortos a quem não cortaram o cordão desumbilical. Faço parte daqueles que não são lembrados. Mas não ando por aí, pandemoniando os vivos. Aceitei a prisão da cova, me guardei no sossego que compete aos falecidos.
Me ajudou o ter ficado junto a uma árvore. Na minha terra escolhem um canhoeiro. Ou uma mafurreira. Mas aqui, nos arredores deste forte, não há senão uma magrita frangipaneira.
Enterraram-me junto a essa árvore. Sobre mim tombam as perfumosas flores do frangipani. Tanto e tantas que eu já cheiro a pétala. Vale a pena me adoçar assim? Porque agora só o vento me cheira. No resto, ninguém me cuida. Disso eu já me resignei. Mesmo esses que rondam, pontuais, os cemitérios, que sabem eles dos mortos? Medos, sombras e escuros. Até eu, falecido veterano, conto sabedoria pelos dedos. Os mortos não sonham, isso vos digo. Os defuntos só sonham em noites de chuva. No resto, eles são sonhados. Eu que nunca tive quem me deitasse lembrança, eu sou sonhado por quem? Pela árvore. Só o frangipani me dedica nocturnos pensamentos.
A árvore do frangipani ocupa uma varanda de uma fortaleza colonial. Aquela varanda já assistiu a muita história. Por aquele terraço escoaram escravos, marfins e panos. Naquela pedra deflagraram canhões lusitanos sobre navios holandeses.
Nos fins do tempo colonial, se entendeu construir uma prisão para encerrar os revolucionários que combatiam contra os portugueses. Depois da Independência ali se improvisou um asilo para velhos. Com os terceiro-idosos, o lugar definhou.
Veio a guerra, abrindo pastos para mortes. Mas os tiros ficaram longe do forte. Terminada a guerra, o asilo restava como herança de ninguém. Ali se descoloriam os tempos, tudo engomado a silêncios e ausências. Nesse destempero, como sombra de serpente, eu me ajeitava a impossível antepassado.
Até que, um dia, fui acordado por golpes e estremecimentos.
Estavam a mexer na minha tumba. Ainda pensei na minha vizinha, a toupeira, essa que ficou cega para poder olhar as trevas. Mas não era o bicho escavadeiro. Pás e enxadas desrespeitavam o sagrado. O que esgravatava aquela gente, avivando assim a minha morte? Espreitei entre as vozes e entendi: os governantes me queriam transformar num herói nacional. Me embrulhavam em glória. Já tinham posto a correr que eu morrera em combate contra o ocupante colonial. Agora queriam os meus restos mortais. Ou melhor, os meus restos imortais. Precisavam de um herói mas não um qualquer. Careciam de um da minha raça, tribo e região. Para contentar discórdias, equilibrar as descontentações. Queriam pôr em montra a etnia, queriam raspar a casca para exibir o fruto. A nação carecia de encenação. Ou seria o vice-versa? De necessitado eu passava a necessário.

Excerto de A Varanda do Frangipani de Mia Couto. Curiosamente, o livro inteiro, aqui, no esnips.
Quem é esta Maria Teresa que desatou a pôr os livros do Mia Couto online, em formato .doc? E não só ele, são mais que muitos, uma biblioteca pessoal.

2 comments:

Anonymous said...

ROUPAS DE BANDEIRA....

jorge vicente said...

ela é uma anja por nos ter dado tantos livrinhos bons!!!!

 
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