light gazing, ışığa bakmak

Tuesday, February 19, 2008

quê

A cor dos olhos
Clara Santos

Foi ontem que cheguei à conclusão. Tudo o que fiz até agora, tudo o que se passou, foi igual a duas semanas de tédio. Quem conheci, as fotos e o liceu, maridos e descasamentos; chegada aos quase cinquenta, posso finalmente apagar tudo a esponja, criteriosamente. Não passou de um giz desmaiado. Talvez por não ter tido filhos. Desejei-os muito durante uma boa década, mas depois o desejo foi esmorecendo. Adiava certezas e arranjava entraves de carreira que desencorajaram os homens que me aturaram. A minha agenda estava sempre cheia, compromissos reais e poeiras, nunca me chegaram a ver a cor dos olhos. Afinal o que queria eu? No fim do dia entrar na hora de ponta a cantarolar de cansaço. Podia parar onde me desse na telha ou podia continuar por mais cem quilómetros. Estou presa, amor, não esperes, um conviva inesperado. E espraiava-me pelas paisagens da província, à procura de um bom pão ou de três peças de fruta da beira da estrada.

Ontem nem foi um dia fora do vulgar. Saí, entrei, trabalhei, falei, voltei a sair. Agora sem ninguém à espera, finalmente, a não ser o amarelo do sofá, os desenhos curvos dourados a fingir um exotismo distante no tecido grosso das almofadas. Nem gato. E nem cão. Vivas, só as opuntias que me sobrevivem numa mesa de pé de galo muito kitsch que encosto à janela. Para não se aborrecerem, claro, quando me imagino planta sinto sempre um apertar de estômago de clausura: não havia água que me regasse a imobilidade. Mas elas são elas, e eu tenho pernas. Ponho-as perto do lá fora por onde eu ando sempre, por onde andava quando a vi. Ela era só uma miúda de uns treze anos. Cabelo caído, boca pequena, aquele aspecto espantado que as miúdas carregam. Um desafio pequenino, timidamente limitado aos desenhos urbanos nos ténis e à cruz massónica que trazia pendurada num cordão de pele. Era vulgar: borbulhas, ganga, as memórias da gramática ainda nos ouvidos, os traços de divisão e a geografia. Um dia gostava de ter sido esta miúda, pensei.

E foi quando vi tudo, assim de repente, como se costuma dizer que se vê isto e aquilo quando se morre. Ou quando se está a morrer. Dilúvios do cérebro a querer agarrar a vida, há sempre quem queira vislumbrar o corredor da passagem para a tal luz dos sonhos de toda a gente, ou não houvesse igreja. Promessas. Não as que eu vi, eu deixei-as cair, caiu-me tudo, passado e presente. Os momentos de raiva dissolvidos em abraços, os momentos ditos essenciais que ninguém nos tira, os dias todos mais importantes, aqueles da praxe e os outros, segredados ou secretos. Tudo estatelado, esborrachado mesmo, no alcatrão da estação de serviço. A miúda nem me viu, passou a arrastar os passos, as orelhas ligadas à música do mp3, os pensamentos facilmente rastreados. E eu, idiota nua, a ouvir o ruído de vidros quebrados ao fundo da rua.

Por vezes acreditamos que o passado permanece. Nunca fui de guardar bibelôs nem souvenirs. Dia após dia atarefei-me em dispensar objectos, escritos, todas as minhas marcas. Não que me enjoe a minha própria sombra, mas preferia não a ter, andar e estar tudo limpo à minha volta, luminoso e transparente como as paredes de um aquário. Desdenhava, talvez até demais, as personagens que empilhavam pedaços inanimados a pensar que era vida, ou que aquilo tudo significava alguma coisa. Aquele apego patético à colher de prata da bisavó que pariu cinco filhos na casa do Fundão. Ficaram os filhos e os netos e já era demais, não havia quem os segurasse. Mas deles nem me lembro bem, sei os nomes e já é quase tudo. Nunca tive álbuns com intermináveis retratos de mim mesma, nem cofrets com frascos baços, prendas de outros aniversários. Pode dizer-se que não era romântica. Podia ter sido mas, para mim, dia ganho, dia gasto.

Olha!

A miúda levantou os olhos para mim, velha instalada, as linhas da minha cara a toldarem-lhe a vista. Pestanejou, leve, leve, e a boca mexeu devagar, a voz era suave.

Sim?

Tens horas que me digas?

Pergunta parva, pelo menos tinha o pulso livre de relógio, mas foi o que me veio à cabeça. Tinha que a parar, aconteceu.

São seis e meia.

Obrigada. Estou muito atrasada...

E sem mais veia de inspiração, reduzi-me ao que me tinha tornado segundos antes; um amontoado de vidros partidos.

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