«E o passado não conta nas pessoas?», pergunta Maria das Mercês. «Pois olhe, eu acho que basta um tipo ter sido criado numa ilha para ganhar uma maneira de ser especial. Pelo menos precisa de imaginação para suportar aquela pasmaceira.»
Tomás Manuel pisca-me o olho:
«Influência do factor geográfico no comportamento das espécies.»
«Oh, não goze», implora ela, pegando no tricot.
E o marido, uma vez mais para mim:
«É isto. A sociologia chegou à Gafeira.»
Silêncio a seguir: uma esposa que faz malha, um Engenheiro anfitrião que bebe, rolando o copo nos dedos. Situação pouco agradável para um visitante, não fosse o whisky velho que o acompanha e a não menos velha curiosidade que nunca abandona o contador de histórias, esteja onde estiver. Coleccionador de casos, furão incorrigível, actor que escolhe o segundo plano, convencido de que controla a cena, deixa-me rir. Rir com mágoa, porque todos os contadores de histórias, por vício ou por profissão, merecem a sua gargalhada quando julgam que controlam a cena. E quem os trama é o papel, o espaço branco que amedronta - e aí, adeus suficiência. Não há boa memória nem gramática que os salve. Aposto que Xenofonte, apesar de patrono dos escritores caçadores, foi muito melhor furão em campo aberto do que no papiro. Atenção a Tomás Manuel:
«Qualquer dia hei-de pedir-lhe para nos fazer uns grogues à maneira de Cabo Verde.» Refere-se a Domingos, evidentemente. «Ficam estupendos.»
(Entretanto, lembro-me eu, sempre a vigiar a rua e o café, os jornais da tarde ainda vão tardar com o seu boletim meteorológico. Sei muito bem o que se passou com o Domingos e a maneira como o Engenheiro o reconstruiu, peça por pela, depois de o ter arrancado a uma guilhotina da fábrica, sem um braço. Sei tudo. Conheço-lhe a morte que o espera, e até como foi salvo da perdição da bebida graças a uma receita de Tomás Manuel, que, se não me engano, se resume a duas coisas: «rédea curta e porrada na garupa.» Sei tudo menos o passado próximo, o ontem e o hoje, que o jornal da tarde me reserva. E é importante.)
«Agora põe-se-lhe um tractor à frente e é tipo para o montar e desmontar com a maior limpeza. Mas deu-me que fazer, Domingos duma cana. Fui-me a ele, rédea curta e porrada na garupa, e pu-lo okay. Maria, quando tempo esteve o Domingos na Ford?»
«Seis meses,» responde a mulher, do canto da sala. «Olhe... a locutora de que você gosta, Tomás.»
«Dá-lhe cumprimentos. O caso é que num estágio de seis meses, ou nem isso, aprendeu a pegar num tractor como gente grande. Daí até ao Jaguar foi um brinquedo, faz dele o que quer.»
De quando em quando, Maria das Mercês tira uma fumaça da longa boquilha, torna a pousá-la no cinzeiro e, diante do televisor, recomeça a manobra dos dedos e da lã. Maquinalmente, como as beatas quando desfiam um rosário. O tricot, afirma ela, descontrai («a pessoa deixa de pensar») mas, aqui para nós, qual a diferença entre o rosário e as agulhas?, pergunto, olhando-a de relance. Mimetismo lúdico, Professor. Tricot para aquecer os pobres, ave-marias para o nosso eterno descanso - dois movimentos que descontraem a alma e a angústia. (Assunto a desenvolver no meu caderno de notas: a caridade como elemento de equilíbrio social; logo, como estabilizador das hierarquias. «Da necessidade da existência dos pobres para se alcançar o Reino dos Céus.» Mas não vale a pena gastar tempo com o assunto. Vem nos catecismos, Professor.)
No Delfim
José Cardoso Pires
Vejo as pessoas a beber a bica da manhã com os seus cães luzidios sentados ao lado, na esplanada, e tenho pena de não poder fazer o mesmo com o meu cão. (Borrifei-me para os blogues de panfleto, estou na minha.) E ainda a perseguir as mulheres de Cardoso Pires, encontro esta Maria, à mercê de tudo: o marido, a televisão e a cigarrilha, o tricot, as ideias feitas e a sorte da família, à mercê do que deve ser. Poucas vezes vi uma mulher ser tão finamente humilhada em tão poucas linhas. E o olhar do escritor cúmplice e embaraçado. A branca do contador de histórias. A caridade-pilar. Os casamentos brancos.
light gazing, ışığa bakmak
Saturday, March 1, 2008
a vertigem das palavras, quem te dera Jenny Holzer
Publicado por Ana V. às 10:41 AM
TAGS Biblioteca de Babel, Mulheres, Perseguindo as mulheres de Cardoso Pires
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2 comments:
Olá,
Só para desejar que tenhas uma semana excelente.
Um beijo
Armando
Obrigada! :)
E para ti também.
Beijinho,
Ana
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