light gazing, ışığa bakmak

Monday, April 21, 2008

tchin tchin à Sofia Paula... (papelosas comunicações)

... que me animou o dia! Aqui um abaixo às papelosas comunicações, de Mia Couto, ou oAcordo de Mia Couto.

PERGUNTAS DE MIA COUTO À LINGUA PORTUGUESA

Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros
embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos
faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam
cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me
apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo.
Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da
Vida. E quantas são?

Se a Vida tem é idimensões?

Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se
desobedecem.

Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da
lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam:
nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.
Ora qual é a nossa elegância?

Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos
convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita
conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional
esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos
deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na
periferia do mundo, neste sulbúrbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear
ignorâncias.

Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a
palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal,
plástica, fugidia a gramáticas.

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e
linguistas.

Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento
novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das
galinhas de ouro?

Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os
outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis
da língua, alguém sabe as certezas delas?

Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que
se podem colocar à língua:

· Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?

· No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a
expressão: passar a noite em branco?

. A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem
fonética?

· O mato desconhecido é que é o anonimato?

· O pequeno viaduto é um abreviaduto?

· Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.

. Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?

· Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?

· Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última
reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está
ocorrendo não é uma reencornação?

· O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou
riofim?

· Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?

· Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou
um desmarço?

· Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?

· Mulher desdentada pode usar fio dental?

· A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?

· As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome:
"finanças"?

· Um tufão pequeno: um tufinho?

· O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?

· Em águas doces alguém se pode salpicar?

· Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?

· Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?

· Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?

· Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa
da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é,
afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português – o nosso
português – na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos
atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam
sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda
adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a
graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos.

Devolver a estrela ao planeta dormente.

(Mia Couto)

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