light gazing, ışığa bakmak

Thursday, May 22, 2008

"Aqui se castra com limpeza e barato"

outras leituras.

... a castração era praticada um pouco aqui e ali, tanto oficialmente nos hospitais de algumas grandes cidades, por razões médicas mais ou menos válidas, como clandestinamente nas oficinas do campo, conhecidas de todos sem necessitar para isso de porta para a rua. Sabe-se perfeitamente que muitos barbeiros haviam juntado às suas múltiplas actividades médicas ou dentárias a prática da orquidectomia (castração), com instrumentos mais que primitivos e nas condições de higiene que se podem imaginar.

Aí, como no hospital, a anestesia constituía o primeiro óbice: no melhor dos casos, podia consistir na absorção de beberragens com ópio, a fim de neutralizar ao máximo as sensações da criança. As mais das vezes, contentavam-se em comprimir as carótidas, de modo a interromper momentaneamente a circulação: a criança entrava então num estado aproximado ao coma. Mergulhavam-na em seguida num banho de leite, para amolecer as partes genitais, ou num banho de água gelada, que exercia também uma leve função anestesiante e, acima de tudo, impedia que sangrasse de mais. Era uma prática deveras comum, ainda, nas amputações, durante as campanhas napoleónicas. A castração propriamente dita era ao mesmo tempo simples e complexa. Simples, por princípio, como Ancillon resumia no seu Tratado dos Eunucos: "Um eunuco (...) é uma pessoa a quem cortaram as partes próprias à geração". Mas complexa a sua aplicação e, sobretudo, muito perigosa, posto que a operação podia ter resultados desiguais e provocar hemorragias ou infecções, mortais em muitos casos. Uma estimativa, proposta por alguns médicos, situa a mortalidade entre os 10 e 80%, consoante os operadores. Esta estatística, perfeitamente admissível, tem em conta que os precários meios médicos da época quer as diferenças, provavelmente consideráveis, entre cirurgiões tão reputados como os de Bolonha e quaisquer "fazedores de anjos" improvisados nas aldeias mais remotas.

A operação nunca se efectuava antes dos sete anos e raramente depois dos doze: era essencial que ela se verificasse antes do início da função glandular dos testículos. A maioria das crianças era portanto castrada entre os oito e os dez anos. O acto, em si mesmo, tinha de ser muito rápido: começava-se por uma incisão na virilha, pela qual o cirurgião puxava para fora o cordão e os testículos. Procedia-se então à ablação total com uma faca, enquanto os canais eram ligados. Esta operação diferia bastante da dos eunucos de harém, a quem retiravam todos os órgãos sexuais exteriores, em geral depois da puberdade, o que não deixava conservar a voz infantil. No caso dos nossos castrados, era indispensável extrair os dois testículos para conseguir o resultado previsto. Este o motivo por que a explicação de certos sopranistas, que pretendiam ter sido mal operados e não serem totalmente castrados, não tem sentido. Ou a pessoa tinha sido inteiramente operada e possuía uma voz de castrado ou a operação fora parcial (ablação de um só testículo, presença oculta de um terceiro testículo...) e conservava então todas as características masculinas, ficando, para mais, com uma voz de tenhor ligeiro ou de falsetista. É por isso, também, que a história do castrado Balani, contada por Archenholz, não parece crível. O cantor, nascido com as bolsas vazias, teria sido considerado durante toda a juventude como um "castrado natural" e educado musicalmente para se tornar um sopranista. Começou, então, uma brilhante carreira, mas um dia, em cena, quando alguns vocalizos se requeriam um esforço físico considerável, os seus testículos, até aí interiores, saltaram para o seu verdadeiro lugar. Imediatamente perdeu a voz e teve de renunciar à carreira de cantor. Para além do aspecto divertido de uma tal aventura, é de concluir que esta personagem não podia ser um autêntico castrado; talvez tivesse simplesmente conseguido dar a ilusão, graças a uma bela voz aguda, reforçada pela ausência de muda.

in História dos Castrados
de Patrick Barbier

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