light gazing, ışığa bakmak

Monday, May 5, 2008

penélope

chamo-me penélope
dizem que passei muitas noites a tecer
é mentira
passei-as a fazer amor
com cada um dos meus pretendentes
e gozei de cada vez a valer
depois chegou o meu velho marido
dizem que não o reconheci
é mentira
ele é que não me conheceu

Ítaca onde me deitei
deu-me todas as viagens que desejei

Bénédicte Houart
in vida: variações

. . .
E pedindo as devidas desculpas ao DN de 8.3.2008, transcrevo para aqui todo o artigo de Isabel Lucas porque gostei muito de o ler. Única coisa a dizer: todas as críticas dizem que a escrita de Houart não tem sexo, discordo profundamente, tudo o que li dela é extremamente feminino e está dentro do contexto de outras escritas femininas: Lyn Hejinian, Rachel Zucker, Claudia Rankine. Que me lembre, a poesia do quotidiano sempre foi feminina. Talvez em Portugal, com a sua cultura aborrecidamente conservadora, a escrita dura de Houart possa ser confundida e passe como masculina. Que as mulheres não falam assim. Não sendo a minha escrita favorita, gosto que se quebre esta ideia feminina anquilosada de flores e amor e coração.

"Bénédicte Houart.
Não há género na poesia desta poeta que fala a língua da rua e a dos cafés e a das casas e a usa como um homem, mas também é capaz de falar como uma criança e sabe usar a linguagem de como uma prostituta ou como os homens falam das mulheres. Vai publicar o segundo livro na Cotovia
A voz, do outro lado da linha, é doce e a fala cadenciada. Depois escreve coisas como esta: "A puta que me pariu era a mais linda da rua formosa/ eu saí a ela deve ser por isso que mal sorrio os homens/ perguntam/ quanto é..." A voz do outro lado da linha é poeta. Chama-se Bénédicte Houart, é filha de pai belga e mãe portuguesa e nasceu em Braine-le-Conte, uma pequena cidade nos arredores de Bruxelas, em 1968.

Bénedicte Houart tem 39 anos e diz que já pensou muitas vezes na morte. Diz isso e diz também que isso não é nenhuma singularidade. Há quem diga, por sua vez, que os seus textos são brutais, que não parecem vir de uma mulher, ainda para mais jovem, bonita, doce. "Ainda bem que não parecem", diz essa mesma mulher que abandonou um doutoramento na área da estética e se despediu da faculdade onde dava aulas como assistente em disciplinas ligadas à filosofia.

Hoje só escreve e faz traduções do francês. Vai editar agora o segundo livro na Cotovia. O primeiro, Reconhecimento, saiu há dois anos e foi o resultado de uma vida de escrita onde nunca houve coragem para publicar.

"Sempre escrevi, mas sentia que me faltava muito para chegar a um nível que achava o exigível para dar a ler o que escrevia". Houve um momento em que isso aconteceu. Bateu à porta de várias editoras. Sempre recusada. Pediu apoio ao Ministério da Cultura. Negado. "Senti-me ofendida. Sabia que coisas muito piores do que as que eu fazia eram consideradas merecedoras de subsídios. Eu tinha noção de que o meu livro não era vergonha para ninguém."

Um dia o original chegou às mãos de André Jorge, dono da Cotovia, e foi publicado. Primeiro com uns poemas de apresentação na revista Inimigo Rumor e, pouco depois, a título autónomo, na colecção com o mesmo nome.

Agora está quase a sair o segundo livro. Ainda mais duro, fruto de uma experiência que as palavras reflectem. "Tive um acidente e passei meses a recuperar."

Não está impresso, mas não tardará que as vozes, as frases que Bénédicte Houart "rouba" aos outros nas ruas e nos cafés e transforma depois em poesia cheguem às livrarias em forma de livro. "Sentada no café como se/ vendo passar os comboios ou melhor/ no próprio comboio entornando a paisagem... Vida: variações é isso. Happy Birthday parabéns/ pode-se continuar morrendo pela eternidade..."

"Procuro mostrar o outro lado das frases que usamos no dia-a-dia, reelaborá-las e mostrar que há outras facetas, metáforas que podem ser trabalhadas e se vão perdendo com o uso diário". Bénédicte Houart aprendeu isso na adolescência quando leu pela primeira vez Carlos Drummond de Andrade, o brasileiro que trouxe o quotidiano para a poesia. Foi uma espécie de desmistificação: era possível usar a linguagem de rua. E ela não teve nunca pudor em fazê-lo. Escrita de de homem? Responde socorrendo-se das palavras de Gilles Deleuze que dizia que o escritor não tem sexo nem pátria nem língua. "Concordo. Não gostaria que isso só pudesse ter sido escrito por uma mulher. Nós, homens ou mulheres, vivemos e somos marcados pelo que nos acontece..."

E também ela, enquanto leitora do que escreve, se lê como brutal, por vezes. "Lendo os meus textos há um lado mais rude que tem a ver com um sentimento de revolta. E outro mais doce. Jogo como as várias possibilidades semânticas das palavras". As palavras também são matéria e com elas abre o segundo livro, confirmação do talento do primeiro, segundo um editor orgulhoso de não ter batido com a porta a esta poeta. "As palavras irritam-me/ ficam sempre aquém/ se quando não, sou eu que/ fico aquém do/ além onde elas estão."

Enquanto poeta, gosta de se colocar no lugar de observadora. É assim que chega às experiências do outro e as consegue fazer credíveis. Fala da morte como um velho, do sexo como uma prostituta, das mulheres como um homem. "Ouço, sou atenta." E trabalha de várias formas a mesma frase, o mesmo sentido, o mesmo poema que repete até o subverter, até o espremer, tentando esgotá-lo e sempre com outros ritmos, mais veloz, textos mais curtos, lapidados, à procura da palavra exacta mesmo quando essa palavra é a "morte", o fim de todas as possibilidades. E esse é um tema recorrente na sua poesia. A morte e as mulheres ou a mulher, no singular. Ela, mulher que "já quis morrer muitas vezes". Voltamos ao início para ouvi-la crua e sem que a voz lhe trema ou tenha uma inflexão diferente. Há calma do outro lado da linha. "Um ser humano vivo não pode deixar de pensar na morte e de vez em quando quer deixar de viver." Bénedicte diz isto e escreve issso que diz de outra forma. "Quando quero morrer entretenho-me/ imaginando as vidas que deus/ ainda não me deu..."
Do DN

4 comments:

Anonymous said...

:)

E o que deu ela? Interessa à literatura?


p.s. Reparei agora no ecrã da tv... ainda há Loto 2?

Beijos já à terça com medo da altura em que puser o despertador do telemóvel e der conta das horas que faltam para ter de ter vontade de sair da cama. =oP

Ana V. said...

Para já deu esta Houart, belga de Coimbra. Da TV nem me digas nada, esse bicho tem dificuldade em me morder eh eh.. e nem me lembres dele, que vai desaustinar às sete da matina. Beijinhos e boa semana. :)

Anonymous said...

Pela maturação da leitura e da reflexão, e a dada altura, considerei de maior credibilidade a personagem Penélope versão (Molly Bloom Joyceana).
Acho que a Houart desmistificou-a. Ninguém tece durante tanto tempo a solidão e o afastamento.
A propósito sugiro se me permites: The Penelopiad; The Myth of Penelope and Odysseus de Margaret Atwood.
Boa semana

Ana V. said...

Grande prenda G. -vale por mil imagens. a mesmo para ti.

 
Share