A Imaginação Pornográfica
Susan Sontag
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Ninguém deveria iniciar uma discussão sobre pornografia antes de reconhecer a existência das pornografias (há pelo menos três) e antes de se empenhar em considerá-las uma a uma. Há muito a se ganhar em exatidão se a pornografia, como um item na história social, for tratada de modo totalmente separado da pornografia enquanto fenômeno psicológico (segundo a visão comum, sintomático de deficiência ou deformidade sexual, tanto nos produtores como nos consumidores) e se, em seguida, se distinguir dessas duas uma outra pornografia: modalidade ou uso menor, mas interessante, no interior das artes.
É a última das três pornografias que desejo focalizar. Mais especificamente, o gênero literário para o qual, na falta de um nome melhor, estou disposta a aceitar (na privacidade do debate intelectual autêntico, não nos tribunais) o duvidoso rótulo de pornografia. Por gênero literário pretendo dizer um corpo de obras pertencentes à literatura considerada como uma arte, e ao qual concernem padrões inerentes de excelência artística. Do ponto de vista dos fenômenos sociais e psicológicos, todos os textos pornográficos têm o mesmo status – são documentos. Porém, do ponto de vista da arte, alguns desses textos podem se tornar alguma coisa além disso. Não apenas obras como Trois Filles de leur Mère, de Pierre Louys, Histoire de l’Oeil e Madame Edwarda, de George Bataille, e as pseudônimas História de O e A Imagem pertencem à literatura, mas é possível esclarecer por que esses livros, todos os cinco, ocupam um grau mais elevado enquanto literatura do que, por exemplo, Candy e Teleny, de Oscar Wilde, ou Sodom, do Conde de Rochester, ou O Hospodar Devasso, de Apollinaire, ou Fanny Hill, de Cleland. A avalancha de obras artísticas comerciais vendidas ilegalmente por dois séculos e, agora, cada vez mais, fora de mercado, não impugna a condição de literatura do primeiro grupo de livros pornográficos, na mesma medida em que a proliferação de livros como The Carpetbaggers e O Vale das Bonecas não coloca em questão as credenciais de Ana Karenina e de O Grande Gatsby, ou de The Man Who Loved Children. A proporção de literatura autêntica em relação ao refugo, na pornografia, talvez seja um pouco menor que a proporção de romances de genuíno mérito literário face a todo o volume de ficção subliterária produzida para o gosto popular. Contudo é provável que não seja menor, por exemplo, que a de outro subgênero de reputação um pouco duvidosa com poucos livros de primeira linha a seu crédito: a ficção científica. (Enquanto formas literárias, a pornografia e a ficção científica assemelham-se uma à outra de várias e interessantes maneiras.) De toda forma, a medida quantitativa fornece um padrão trivial. Por relativamente incomuns que possam ser, existem textos que nos parece razoável chamar de pornográficos – considerando que o rótulo batido tenha algum uso –, aos quais, ao mesmo tempo, não se pode recusar o crédito de literatura séria.
A afirmação pode parecer óbvia. No entanto, a primeira vista, não é isso o que acontece. Pelo menos na Inglaterra e nos Estados Unidos, a avaliação e o exame racionais da pornografia são efetuados firmemente no interior dos limites do discurso empregado pelos psicólogos, sociólogos, historiadores, juristas, moralistas profissionais e críticos sociais. A pornografia é uma doença a ser diagnosticada e uma ocasião para julgamento. É alguma coisa frente à qual se é contra ou a favor. E a tomada de posição sobre a pornografia dificilmente é o mesmo como ser contra ou a favor da música aleatória ou da arte Pop, mas é um pouco como se posicionar sobre o aborto legalizado ou a ajuda federal às escolas paroquiais. Com efeito, a mesma abordagem fundamental do tema é partilhada por eloqüentes defensores recentes do direito e da obrigação da sociedade em censurar livros sujos (como George P. Elliott e George Steiner) e por aqueles (como Paul Goodman) que antevêem as conseqüências perniciosas de uma política de censura, muito piores que qualquer dano causado pelos próprios livros. Tanto os libertários como os presumidos censores concordam em reduzir a pornografia a um sintoma patológico e a uma mercadoria social problemática. Existe um consenso quase unânime sobre o que a pornografia é – sendo identificada com noções sobre as fontes do impulso de produção e consumo desses curiosos bens. Quando enfocada como um tema para análise psicológica, a pornografia raramente é vista como mais interessante que textos que ilustram uma interrupção deplorável no desenvolvimento sexual do adulto normal. Nesta visão, tudo o que a pornografia significa é a representação das fantasias da vida sexual infantil, editadas pela consciência mais treinada, menos inocente, do adolescente masturbador, para ser comprada pelos chamados adultos. Enquanto fenômeno social (por exemplo, o surto na produção de pornografia nas sociedades da Europa e nos Estados Unidos a partir do século XVIII), a abordagem não é menos inequívoca e clínica: a pornografia torna-se uma patologia de grupo, a doença de toda uma cultura, sobre cujas causas existe uma concordância geral. A crescente produção de livros “sujos” é atribuída a um legado maligno da repressão sexual cristã e à mera ignorância psicológica – essas antigas deficiências unindo-se agora a eventos históricos mais próximos: o impacto dos drásticos deslocamentos nos modos tradicionais da família e da ordem política, e a mudança anárquica nos papéis sexuais. (O problema da pornografia é um “dos dilemas de uma sociedade em transição”, disse Goodman, em um ensaio, alguns anos atrás.) Assim, há uma considerável harmonia quanto ao diagnóstico da pornografia. As discordâncias surgem somente na avaliação das conseqüências psicológicas e sociais de sua disseminação e, portanto, na formulação tática e política.
Os arquitetos mais esclarecidos da política moral estão indubitavelmente preparados para admitir que existe algo que pode ser chamado de “imaginação pornográfica”, embora somente no sentido de que as obras pornográficas são comprovações de uma falência ou deformação radical da imaginação. E eles podem garantir, como sugeriram Goodman, Wayland Young e outros, que também existe uma “sociedade pornográfica”: que, na verdade, a nossa sociedade constitui um florescente exemplo dela, tão hipócrita e repressivamente construída que precisa produzir uma efusão de pornografia, tanto com sua expressão lógica quanto com seu subversivo e vulgar antídoto. Porém em nenhum ponto da comunidade de letras anglo-americana encontrei qualquer indicação de que alguns livros pornográficos são obras de arte de interesse e importância. Enquanto a pornografia for tratada apenas como um fenômeno social e psicológico e um foco de preocupação moral, como pode tal argumento ser apresentado?
2
Há uma outra razão, à parte essa classificação da pornografia como um tópico de análise, que explica por que a questão de saber se as obras de pornografia podem ou não ser literatura nunca foi genuinamente debatida. Trata-se da própria visão de literatura mantida pela maioria dos críticos ingleses e norte-americanos – uma visão que, ao excluir os escritos pornográficos, por definição, dos recintos da literatura, exclui muito mais além disso.
Por certo, ninguém nega que a pornografia constitui um ramo da literatura no sentido de que aparece na forma de livros impressos de ficção. Entretanto, afora essa relação trivial, nada mais se permite. O modo como a maioria dos críticos constrói a natureza da literatura em prosa (na mesma medida que sua visão da natureza da pornografia) inevitavelmente coloca a pornografia em oposição à literatura. Esse é um argumento estanque, pois, se um livro pornográfico é definido como não pertencendo à literatura (e vice-versa), não há razão para examinar as obras individuais.
A maioria das definições entre si excludentes de pornografia e de literatura baseia-se em quatro razões diversas. A primeira é a de que a maneira completamente unívoca em que os livros de pornografia se dirigem ao leitor, propondo-se a excitá-lo sexualmente, é antitética à complexa função da literatura. Alega-se que o propósito da pornografia, a indução da excitação sexual, está em conflito com o tranqüilo e desapaixonado envolvimento que evoca a genuína arte. Mas essa mudança do argumento parece particularmente não-convincente, considerando-se o reverenciado apelo aos sentimentos morais do leitor tentado pela escrita “realista”, para não mencionar o fato de que algumas obras-primas indiscutíveis (de Chaucer a Lawrence) contêm passagens que rematadamente excitam os leitores. É mais plausível apenas enfatizar que a pornografia ainda possui somente uma “intenção”, ao passo que a obra de literatura de real valor contém muitas.
Outra razão, adiantada por Adorno entre outros, é a de que nas obras de pornografia falta a forma de começo-meio-e-fim característica da literatura. Uma peça de ficção pornográfica mal inventa uma indisfarçada desculpa para um início e, uma vez tendo começado, avança às cegas e termina nenhures.
O argumento seguinte: o texto pornográfico não é capaz de evidenciar nenhum cuidado com seu meio de expressão enquanto tal (a preocupação da literatura), uma vez que o propósito da pornografia é inspirar uma série de fantasias não-verbais em que a linguagem desempenha um papel secundário, meramente instrumental. A última e mais importante alegação defende que o tema da literatura é a relação dos seres humanos uns com os outros, seus complexos sentimentos e emoções; a pornografia, em contraste, desdenha as pessoas plenamente formadas (a psicologia e o retrato social), é desatenta à questão dos motivos e de sua credibilidade, e narra apenas as transações infatigáveis e imotivadas de órgãos despersonalizados.
A simples extrapolação, a partir do conceito de literatura mantido atualmente pela maior parte dos críticos ingleses e norte-americanos, levaria à conclusão de que o valor literário da pornografia é nulo. Mas esses padrões não resistem, por si sós, a uma análise mais cuidadosa, tampouco se ajustam a seu objeto. Tome-se, por exemplo, História de O. Ainda que o romance seja nitidamente obsceno pelos padrões usuais, e mais eficiente que qualquer outro no despertar sexualmente o leitor, a excitação não parece ser a única função das situações retratadas. A narrativa tem, com efeito, um começo, um meio e um fim definidos. É raro a elegância da escrita deixar a impressão de que o autor considere a linguagem uma necessidade aborrecida. Além disso, as personagens possuem de fato emoções intensas, embora obsessivas e, na verdade, bastante associais; e têm motivações, sem que sejam psiquiátrica ou socialmente “normais”. Em História de O, os protagonistas são dotados de uma espécie de “psicologia”, derivada da psicologia da luxúria. E, embora aquilo que possa ser apreendido das personagens no interior das situações em que são colocadas seja severamente limitado – a maneira da concentração sexual e de comportamento sexual explicitamente apresentado –, O e seus parceiros não são mais reduzidos ou esboçados que as personagens de muitas obras não-pornográficas da ficção contemporânea.
Apenas quando os críticos ingleses e norte-americanos desenvolverem uma visão mais sofisticada de literatura, um debate interessante poderá ser desencadeado. (Afinal, tal debate seria não só sobre a pornografia, mas sobre todo o corpo da literatura contemporânea insistentemente centrado em situações e comportamentos extremos.) A dificuldade surge porque inúmeros críticos continuam a identificar com a própria literatura em prosa as convenções literárias particulares do “realismo” (daquilo que se poderia toscamente associar à tradição principal do romance do século XIX). Para exemplos de modos literários alternativos não estamos confinados apenas à maior parte dos grandes textos do século XX (de Ulisses, um livro que não trata de personagens mas dos meios de intercâmbio transpessoal, de tudo o que liga a psicologia individual externa e a necessidade pessoal; ao surrealismo francês e seu produto mais recente, o Novo Romance; à ficção “expressionista” alemã; ao pós-romance russo representado por São Petersburgo, de Biely, e por Nabokov; ou às narrativas não-lineares e sem tensão, de Stein e Burroughs). Uma definição de literatura que culpa uma obra por ser enraizada na “fantasia”, e não na apresentação realista de como pessoas vivem umas com as outras em situações comuns, não pode sequer dar conta de convenções veneráveis como a pastoral, que narra relações entre pessoas de forma certamente redutiva, insípida e não-convincente.
A eliminação de alguns desses clichês persistentes é uma tarefa já há muito em atraso: ela promoveria uma leitura judiciosa da literatura do passado, ao mesmo tempo que colocaria os críticos e os leitores em contato com a literatura contemporânea, que inclui áreas de escrita que estruturalmente se assemelham à pornografia. Parece fácil, e virtualmente sem sentido, exigir que a literatura se apegue ao “humano”. O que está em jogo não é o “humano” em contraposição ao “inumano” (onde a opção pelo “humano” garante instantânea auto-congratulação moral tanto ao autor como ao leitor), mas um registro infinitamente variado de formas e tonalidades para transpor a voz humana para a narrativa em prosa. Aos olhos do crítico, a questão em pauta não é a relação entre o livro e “o mundo” ou a “realidade” (em que cada romance é avaliado como se fosse um item único, e onde o mundo é visto como um lugar muito menos complexo do que é), mas as complexidades do próprio conhecimento, como meio através do qual um mundo afinal existe e é constituído, bem como uma abordagem de livros de ficção específicos que não desconsidera o fato de que eles existem em diálogo uns com os outros. Desse ponto de vista, a decisão dos velhos romancistas, de retratar o desenvolvimento dos destinos de “personagens” agudamente individualizadas, em situações familiares e socialmente densas, no quadro da notação convencional de seqüência cronológica, é apenas uma das muitas decisões possíveis, não possuindo nenhum apelo inerentemente superior à fidelidade dos leitores sérios. Nada existe de mais “humano” quanto a esses procedimentos. A presença de personagens realistas não é, em si, alguma coisa benéfica, uma matéria-prima mais nutritiva para a sensibilidade moral.
A única verdade segura sobre as personagens da ficção em prosa é que constituem, na expressão de Henry James, “um recurso de composição”. A presença de figuras humanas na arte literária pode servir a muitos propósitos. A tensão dramática ou a tridimensionalidade na apresentação das relações pessoais e sociais, com freqüência, não é um objetivo do escritor e, nesse caso, pouco auxílio traz insistir nisso como um padrão genérico. Explorar idéias é um propósito igualmente autêntico da prosa de ficção, ainda que pelos padrões do realismo no romance esse objetivo limite em muito a apresentação de personagens reais. A construção ou a representação de algo inanimado, ou de uma parcela do mundo da natureza, é também um empreendimento válido, e compreende uma regraduação apropriada da figura humana. (A forma da pastoral envolve ambos os propósitos: a representação de idéias e da natureza. As pessoas são utilizadas somente na extensão em que constituem um certo tipo de paisagem, que é, de uma parte, estilização da natureza “real” e, de outra, paisagem de idéias neoplatônicas.) E são igualmente válidos, como tema para a narrativa em prosa, os estados extremos da consciência e dos sentimentos humanos, aqueles tão peremptórios que excluem o fluxo mundano de sentimentos e se ligam apenas por contingência a pessoas concretas – é o que ocorre com a pornografia.
Não se deve imaginar, a partir dos pronunciamentos confiantes sobre a natureza da literatura feitos pela maior parte dos críticos norte-americanos e ingleses, que um intenso debate sobre esse tema vem se desenvolvendo por várias gerações. “Parece-me”, escreveu Jacques Rivière na Nouvelle Revue Française em 1924, “que estamos presenciando uma crise muito grave na concepção do que é a literatura”. Uma das diversas respostas ao “problema da possibilidade e dos limites da literatura”, notou Rivière, é a acentuada tendência da “arte (se ainda é possível manter o termo) a se tornar uma atividade completamente não-humana, uma função supersensorial, se posso usar a expressão, uma espécie de astronomia criativa”. Cito Rivière não porque seu ensaio, “Questionando o Conceito de Literatura”, seja particularmente original, definitivo ou sutil, mas simplesmente para lembrar um conjunto de noções radicais sobre a literatura que constituíam quase obviedades críticas, quarenta anos atrás, nas revistas literárias européias.
Até o momento, no entanto, esse fermento permanece alheio, não-assimilado e persistentemente mal compreendido no mundo das letras inglesas e norte-americanas: suspeito de provir de uma coletiva falência cultural de energia; freqüentemente desconsiderado como pura perversidade, obscurantismo ou esterilidade criativa. Os melhores críticos de língua inglesa, entretanto, dificilmente poderiam deixar de notar quanto da grande literatura do século XX subverte essas idéias, recebidas de alguns dos mais importantes romancistas do século XIX, sobre a natureza da literatura, que continuam a ecoar até hoje, em 1967. Mas a percepção de uma literatura genuína e nova foi geralmente oferecida pelos críticos em um espírito muito semelhante ao dos rabinos, no século anterior ao principio da era cristã, os quais, reconhecendo humildemente a inferioridade espiritual de sua própria época frente à era dos grandes profetas, não obstante encerraram resolutamente o cânone dos livros proféticos e declararam (com mais alívio que pesar, segundo se suspeita) que a era da profecia terminara. Assim a época daquilo que na crítica anglo-americana ainda é denominado, de forma bastante surpreendente, literatura “experimental” ou “de vanguarda”, tem sido repetidamente declarada concluída. A celebração ritual do solapamento operado por cada um dos gênios contemporâneos nas velhas noções de literatura foi sempre acompanhada pela insistência nervosa em que a escrita vinda à luz era, com pesar, a última de sua nobre e estéril linhagem. Ora, os resultados dessa maneira intrincada e unilateral de examinar a literatura foram várias décadas de interesse e brilho sem paralelos na crítica inglesa e norte-americana – particularmente nesta última. No entanto trata-se de um brilho e um interesse erigidos sobre uma falência do gosto e algo próximo de uma fundamental desonestidade de método. A retrógrada percepção dos críticos face às novas e impressionantes reivindicações demarcadas pela literatura moderna, aliada a seu despeito por aquilo que é comumente designado como “a rejeição da realidade” e “a falência do eu”, endêmicas nessa literatura, indica o ponto preciso em que a crítica literária anglo-americana mais talentosa abandona a consideração das estruturas da literatura e se transpõe para a crítica da cultura.
Não pretendo repetir aqui os argumentos que adiantei em outros lugares, a favor de uma abordagem crítica diferente. Todavia alguma alusão a tal abordagem é necessária. Mesmo a discussão de uma obra específica, da natureza radical de Histoire de l’Oeil, levanta a questão da própria literatura, da narrativa em prosa considerada como uma forma artística. E livros como os de Bataille não poderiam ter sido escritos se não fosse pela reapreciação angustiada da natureza da literatura, que tem preocupado a Europa literária por mais de meio século; mas, faltando-lhes aquele contexto, necessariamente se mostram quase inassimiláveis aos leitores ingleses e norte-americanos – exceto como “mera” pornografia, como lixo de inexplicável extravagância. Se ainda é necessário levantar a questão de saber se a pornografia e a literatura são ou não antitéticas, se é totalmente necessário afirmar que as obras de pornografia podem pertencer à literatura, então a afirmativa deve implicar uma visão global do que é a arte.
Para colocar a questão de forma mais geral: a arte (e fazer arte) é uma forma de consciência; seus materiais são a variedade de formas de consciência. Nenhum princípio estético pode fazer com que essa noção da matéria-prima da arte seja construída excluindo-se mesmo as formas mais extremas de consciência, que transcendem a personalidade social ou a individualidade psicológica.
Na vida cotidiana, sem dúvida, podemos reconhecer uma obrigação moral de inibir tais estados de consciência em nós próprios. O que parece pragmaticamente justo, não apenas para manter a ordem social no sentido mais amplo, como para permitir que o indivíduo estabeleça e permaneça em contato humano com outras pessoas (embora se possa renunciar a isso por períodos mais ou menos longos). É bem conhecido que, quando as pessoas se aventuram em regiões longínquas da consciência, fazem-no com o risco de sua sanidade, isto é, de sua humanidade. Mas a “escala humana”, ou o padrão humanístico próprio à vida e à conduta normais, parece mal colocada quando se aplica à arte. Ela supersimplifica. Se durante o último século a arte concebida como uma atividade autônoma chegou a ser investida de uma estatura sem precedentes – a coisa mais próxima a uma atividade humana sacramental reconhecida pela sociedade secular – isso se deve a uma das tarefas que a arte assumiu: a de efetuar incursões e conquistar posições nas fronteiras da consciência (em geral muito perigosas ao artista como pessoa), para relatar o que lá encontrou. Sendo um livre explorador dos perigos espirituais, o artista ganha uma certa permissão para se comportar diferentemente de outras pessoas; ao igualar a singularidade de sua vocação, ele pode ou não ser adornado com um estilo de vida de conveniente excentricidade. Seu ofício é inventar troféus de suas experiências – objetos e gestos que fascinam e encantam, não meramente edificam e entretêm (como recomendavam as velhas noções do artista). Seu principal meio de fascinação é avançar mais um passo na dialética do ultraje. Busca tornar sua obra repulsiva, obscura, inacessível; em suma, oferecer o que é, ou parece ser, não desejado. Entretanto, por mais violentos que possam ser os ultrajes que o artista perpetre a seu público,. suas credenciais e sua autoridade espiritual dependem, em última instância, da consciência do público (seja algo conhecido ou inferido) sobre os ultrajes que ele comete contra si mesmo. O artista moderno exemplar é um corretor da loucura.
A noção da arte como um produto custosamente adquirido através de um imenso risco espiritual, cujo preço aumenta com o ingresso e a participação de cada novo jogador na partida, convida a um conjunto revisado de modelos críticos. A arte produzida sob a égide de tal concepção não é – e não pode ser – “realista”. Mas expressões como “fantasia” ou “surrealismo”, que somente invertem a pauta do realismo, pouco esclarecem. A fantasia decai demasiado facilmente em “simples” fantasia; o argumento definitivo é o adjetivo “infantil”. Onde termina a fantasia (condenada por padrões psiquiátricos e não-artísticos) e onde começa a imaginação?
Como parece pouco provável que os críticos contemporâneos desejem seriamente excluir as narrativas em prosa de caráter irrealista do domínio da literatura, somos levados a suspeitar que um padrão especial está sendo aplicado aos temas sexuais. Isso se torna mais claro quando se pensa em outro tipo de obra, em outra espécie de “fantasia”. A paisagem irreal e a-histórica onde a ação é situada, o tempo peculiarmente congelado em que os atos são desempenhados – esses traços ocorrem com a mesma freqüência na ficção científica e na pornografia. Não há nada de conclusivo no fato bem conhecido de que a maioria dos homens e das mulheres não é capaz das proezas sexuais que as pessoas aparentam desempenhar na pornografia; que o tamanho dos órgãos, o número e a duração de orgasmos, a variedade e a praticabilidade dos poderes sexuais, bem como o total de energia sexual são grosseiramente exagerados. É correto, da mesma maneira, que as naves espaciais e os incontáveis planetas retratados nos romances de ficção científica também não existem. O fato de que o espaço da narrativa é um topos ideal não desqualifica nem a pornografia. nem a ficção científica de sua condição de literatura. Tais negações do tempo social, do espaço e da personalidade reais, concretos e tridimensionais (assim como as ampliações “fantásticas” da energia humana) são precisamente os ingredientes de um outro gênero de literatura, fundado num modo diverso de consciência.
Os materiais das obras pornográficas tidas como literatura são, precisamente, uma das formas extremas de consciência humana. Sem dúvida, muitas pessoas concordariam que a consciência sexualmente obcecada pode, em princípio, ingressar na literatura como forma de arte. Literatura sobre a luxúria? Por que não? Mas, em seguida, elas comumente acrescentam uma cláusula ao acordo, que na prática acaba por anulá-lo. Exigem que o autor tenha a adequada “distância” de suas obsessões para que possam considerá-las literatura. Tal padrão é mera hipocrisia, revelando, mais uma vez, que os valores usualmente aplicados à pornografia são, afinal, os pertencentes à psiquiatria e aos estudos sociais, mais que à arte. (Desde que a cristandade elevou a parada e se concentrou no comportamento sexual como a raiz da virtude, tudo aquilo que pertença a sexo tem sido um “caso especial” em nossa cultura, provocando atitudes peculiarmente inconsistentes.) As pinturas de Van Gogh preservam sua condição de obra de arte, embora aparentemente sua maneira de pintar se devesse menos a uma escolha consciente de meios representativos do que a seu ar desordenado, o qual realmente via o mundo da forma como o pintava. Do mesmo modo, Histoire de l’Oeil não se transforma num estudo de caso, mas em arte, porque, como revela Bataille no extraordinário ensaio autobiográfico acrescentado à narrativa, as obsessões do livro são na verdade as suas próprias.
O que faz de uma obra de pornografia parte da história da arte, ao invés de pura escória, não é a distância, a superposição de uma consciência mais conformável à da realidade comum sobre a “consciência desordenada” do eroticamente obcecado. Em vez disso, é a originalidade, a integridade, a autenticidade e o poder dessa própria consciência insana, enquanto corporificada em uma obra. Do ponto de vista da arte, a exclusividade da consciência incorporada nos livros pornográficos não é, em si mesma, nem anômala, nem antiliterária.
Tampouco o pretenso objetivo ou resultado, intencional ou não, dessas obras (excitar o leitor sexualmente) chega a ser um defeito. Somente uma noção empobrecida e mecanicista de sexo poderia levar alguém a pensar que ser sexualmente estimulado por um livro como Madame Edwarda é uma questão simples. A unilateralidade de intenção, com freqüência condenada pelos críticos, compõe-se, quando a obra merece o tratamento de arte, de muitas ressonâncias. As sensações físicas involuntariamente produzidas em alguém que leia a obra carregam consigo algo que se refere ao conjunto das experiências que o leitor tem de sua humanidade – e de seus limites como personalidade e como corpo. A singularidade da intenção pornográfica é, na realidade, espúria. Mas a agressividade da intenção não o é. Aquilo que parece um fim é, na mesma medida, um meio, assustadora e opressivamente concreto. O fim, entretanto, é menos concreto. A pornografia é um dos ramos da literatura – ao lado da ficção científica – voltados para a desorientação e o deslocamento psíquico.
Em certos aspectos, o uso de obsessões sexuais como tema da literatura assemelha-se ao uso de um tema literário cuja validade bem poucas pessoas contestariam: as obsessões religiosas. Assim comparado, o fato conhecido do impacto definido e agressivo da pornografia sobre seus leitores apresenta-se um pouco diferente. A sua intenção notória de estimular sexualmente os leitores é na verdade uma espécie de proselitismo. A pornografia que é autêntica literatura visa “excitar” da mesma forma que os livros que revelam uma forma extrema de experiência religiosa têm como propósito “converter”.
3
Duas obras francesas recentemente traduzidas para o inglês, História de O (*) e A Imagem, ilustram convenientemente alguns aspectos envolvidos neste tópico, mal investigado na crítica anglo-americana, da pornografia como literatura.
História de O, de autoria de “Pauline Réage”, surgiu em 1954 e tornou-se imediatamente famosa, em parte devido ao patrocínio de Jean Paulhan, que redigiu o prefácio. Passou a ser crença comum que o próprio Paulhan escrevera a obra – talvez devido ao precedente estabelecido por Bataille, que contribuíra com um ensaio (assinado com seu verdadeiro nome) ao seu Madame Edwarda, quando este fora publicado pela primeira vez em 1937, sob o pseudônimo de “Pierre Angelique”; e também porque o nome Pauline sugeria Paulhan. Mas ele sempre negou que tivesse escrito História de O, insistindo que o livro fora na realidade escrito por uma mulher, que nunca publicara antes e vivia em outra parte da França, preferindo permanecer desconhecida. Embora a história de Paulhan não tenha eliminado as especulações, a certeza de que ele era o autor acabou por se desvanecer. Com o passar dos anos, diversas hipóteses mais engenhosas, que atribuíam a autoria do livro a outros notáveis do cenário político de Paris, ganharam credibilidade e logo foram abandonadas. A identidade real de “Pauline Réage” persiste como um dos raros segredos bem guardados das letras contemporâneas.
A Imagem foi publicado dois anos depois, em 1956, também sob um pseudônimo, “Jean de Berg”. Para compor o mistério, foi dedicado a “Pauline Réage” e teve o prefácio escrito por ela, de quem desde então nada se soube. (O prefácio de “Réage” é conciso e dispensável; o de Paulhan é extenso e muito interessante.) Mas os comentários nos círculos literários de Paris sobre a identidade de “Jean de Berg” são mais conclusivos que o trabalho de investigação sobre “Pauline Réage”. Apenas houve um boato que apontava para a mulher de um influente jovem romancista e que ganhou ampla repercussão.
Não é difícil entender por que aqueles com suficiente curiosidade para especular sobre os dois pseudônimos tiveram de se inclinar para algum nome da comunidade das letras estabelecida da França. Era pouco concebível que qualquer dos dois livros fosse o filho único de um amador. Por diferentes que sejam um do outro, História de O e A Imagem comprovam uma qualidade que não pode ser atribuída simplesmente a uma abundância dos dotes literários comuns da sensibilidade, da energia e da inteligência. Tais dons, bastante em evidência, foram processados, por sua vez, através de um diálogo de artifícios. A sóbria autoconsciência das narrativas dificilmente poderia estar mais longe da ausência de controle e habilidade normalmente consideradas como expressão da luxúria obsessiva. Intoxicantes como seu tema (caso o leitor não se desligue e o ache apenas engraçado ou sinistro), as duas narrativas estão mais preocupadas com o “uso” da matéria-prima erótica do que com a “expressão” dela. E a sua utilização é preeminentemente – não há outra palavra para defini-Ia – literária. A imaginação em busca de seus prazeres ultrajantes em História de O e em A Imagem permanece solidamente ancorada a certas noções de consumo formal de sentimentos intensos, de procedimentos para esgotar uma experiência, que se ligam tanto à literatura e à história literária recente como ao domínio a-histórico de Eros. E por que não? As experiências não são pornográficas, só as imagens e as representações (estruturas da imaginação) o são. É esse o motivo por que um livro pornográfico com freqüência pode fazer o leitor pensar, basicamente, em outros livros pornográficos, e não no sexo não-mediado – e isso não necessariamente em detrimento de sua excitação erótica.
Por exemplo, o que ressoa por toda a História de O é um volumoso corpo, em sua maior parte sem valor, de literatura pornográfica ou “libertina”, tanto inglesa como francesa, que remonta ao século XVIII. A referência mais óbvia é a Sade. Mas aqui não devemos pensar apenas nos escritos do próprio Sade, mas na sua reinterpretação pelos intelectuais literários franceses após a Segunda Guerra Mundial, um movimento crítico talvez comparável (em sua importância e influência sobre o gosto literário educado e a direção real da ficção séria na França) à revalorização de James lançada pouco antes da Segunda Guerra nos Estados Unidos, exceto pelo fato de que a revalorização francesa durou mais tempo e parece ter plantado raízes mais profundas. (Sade, evidentemente, nunca foi esquecido. Foi lido com entusiasmo por Flaubert, Baudelaire e pela maioria dos outros gênios radicais da literatura francesa de fins do século XIX. Um dos santos padroeiros do movimento surrealista, Sade figura com destaque no pensamento de Breton. No entanto seria a discussão sobre ele, após 1945, que realmente consolidaria sua posição como um inesgotável ponto de partida para o pensamento radical sobre a condição humana. O conhecido ensaio de Beauvoir, a extensa biografia erudita empreendida por Gilbert Lely e escritos ainda hoje não traduzidos de Blanchot, Paulhan, Bataille, Klossowski e Leiris são os documentos mais eminentes da revalorização do pós-guerra, que assegurou essa modificação surpreendentemente vigorosa da sensibilidade literária francesa. A qualidade e a densidade teórica do interesse francês por Sade permanece virtualmente incompreensível para os intelectuais ingleses e norte-americanos, para os quais Sade é talvez uma figura exemplar na história da psicopatologia, tanto individual como social, porém é-lhes inconcebível levá-lo a sério como “pensador”.).
Mas o que está por trás de História de O não é somente Sade, os problemas que levantou e os que foram suscitados em seu nome. O livro também lança raízes nas convenções dos livretos “libertinos” escritos na França do século XIX, tipicamente situados em uma Inglaterra fantasiosa, habitada por aristocratas brutais com enormes equipamentos sexuais e gostos violentos, a ser saciados ao longo do eixo do sadomasoquismo. O nome do segundo amante-proprietário de O, Sir Stephen, presta clara homenagem à fantasia desse período, assim como a figura de Sir Edmond de Histoire de l’Oeil. Além disso, deve-se acrescentar que a alusão a um tipo banal de escória pornográfica situa-se, enquanto referência literária, exatamente no mesmo nível que o cenário anacrônico da ação principal, que é buscada diretamente do teatro sexual de Sade. A narrativa abre-se em Paris (O vai ao encontro de seu amante René, em uma carruagem, e é levada a um passeio), mas a maior parte da ação subseqüente transfere-se a um terreno mais familiar, se bem que menos plausível: o castelo convenientemente isolado, com suntuosa mobília e profusão de serviçais, onde um grupo de homens ricos se reúne e para onde são trazidas mulheres virtualmente escravas a fim de se tornarem os objetos, partilhados em comum, da lascívia brutal e inventiva do grupo. Há chicotes e correntes, máscaras vestidas pelos homens quando as mulheres são admitidas em sua presença, achas queimando na lareira, indignidades sexuais indizíveis, chicoteamentos e formas mais engenhosas de mutilação física, diversas cenas de lesbianismo quando a excitação das orgias parece esmorecer. Em resumo, o livro se apresenta munido de alguns dos itens mais frágeis do repertório da pornografia.
Até onde é possível considerá-lo seriamente? Um simples inventário do enredo poderia dar a impressão de que História de O não é tanto pornografia mas meta-pornografia, uma paródia brilhante. Algo parecido foi alegado em defesa de Candy quando este foi publicado aqui vários anos atrás, após um período de modesta existência em Paris como um livro “sujo” mais ou menos oficial. Candy não era pornografia, argumentou-se, mas uma brincadeira, uma espirituosa caricatura dos usos da narrativa pornográfica barata. Em minha própria visão, Candy pode ser engraçado, contudo ainda é pornografia, pois esta é uma forma capaz de parodiar a si mesma. É da natureza da imaginação pornográfica preferir convenções acabadas de personagens, cenário e ação. A pornografia é um teatro de tipos, não de indivíduos. Uma paródia da pornografia, na medida em que tenha real competência, continua a ser pornografia. Na verdade, ela é uma forma comum dos textos pornográficos. Sade a utilizou, com freqüência, invertendo as ficções moralistas de Richardson, em que a virtude feminina sempre triunfa sobre a lubricidade masculina (seja dizendo “não” ou morrendo em seguida). No caso de História de O, seria mais preciso falar de uma “utilização” que de uma paródia de Sade.
O próprio tom de História de O indica que qualquer elemento no livro que possa ser lido como paródia ou gosto por antiguidades (uma pornografia da mandarins?) é apenas um entre vários elementos que formam a narrativa. (Embora sejam graficamente escritas situações sexuais que abrangem todas as variações previsíveis de luxúria, o estilo narrativo é bastante formal, o nível de linguagem digno e quase casto.) Traços da encenação sadeana são usados para aguçar a ação, mas a linha básica da narrativa difere no fundamental de tudo o que Sade escreveu. Em primeiro lugar, a obra de Sade apresenta uma ilimitabilidade ou princípio de insaciabilidade inerentes. Seu Os 120 Dias de Sodoma, provavelmente o livro pornográfico mais ambicioso até hoje concebido (em termos de escala) é uma espécie de suma da imaginação pornográfica; impressionante e desconcertante, mesmo na forma truncada, em parte narrativa e em parte cenário, em que sobreviveu. (O manuscrito foi, por acaso, resgatado da Bastilha após Sade ter sido forçado a deixá-lo para trás, quando o transferiram em 1798 para Charenton; todavia ele acreditou, até a morte, que sua obra-prima se perdera quando a prisão foi destruída.) O trem expresso das imagens sadeanas voa sobre um trilho interminável mas horizontal. Suas descrições são demasiado esquemáticas para serem sensuais. Em vez disso, as ações ficcionais são ilustrações de suas idéias incansavelmente repetidas. Entretanto essas próprias idéias polêmicas, num exame refletido, sugerem mais princípios de uma dramaturgia do que uma teoria substantiva. As idéias de Sade (da pessoa como “coisa” ou “objeto”, do corpo como máquina e da orgia como um inventário das possibilidades esperançosas e infinitas de várias máquinas em colaboração umas com as outras) parecem, no básico, destinadas a tornar possível um gênero infindável e jamais culminante de atividade extremamente desprovida de afeto. Em contraste, História de O tem um movimento definido, uma lógica de acontecimentos, em contraposição ao princípio sadeano estático do catálogo ou da enciclopédia. Tal movimento da trama é favorecido em muito pelo fato de que, na maior parte da narrativa, o autor tolera pelo menos um vestígio do “casal” (O e Renê, O e Sir Stephen) – uma unidade em geral repudiada na literatura pornográfica.
E, sem dúvida, a figura de O é, ela mesma, diferente. Seus sentimentos, por mais que se voltem para um tema, apresentam alguma modulação e são descritos com minúcia. Embora passiva, O dificilmente se assemelha àquelas nulidades das histórias de Sade, que são detidas em castelos remotos para serem atormentadas por nobres impiedosos e padres satânicos. Além disso, O é também mostrada como ativa: literalmente ativa, como na sedução de Jacqueline, e mais importante, profundamente ativa em sua própria passividade. Ela se parece com seus protótipos sadeanos apenas na superfície. Não existe consciência pessoal, exceto a do autor, nos livros de Sade. Mas O de fato possui uma consciência, de cujo ponto de observação sua história é narrada. (Mesmo escrita na terceira pessoa, a narrativa nunca se afasta do ponto de vista de O ou sabe mais do que ela.) Sade visa neutralizar a sexualidade de todas as suas associações pessoais, representar uma espécie de encontro sexual impessoal – ou puro. Mas o relato de “Pauline Réage” mostra O agindo de formas bastante diferentes (inclusive no amor) com diferentes pessoas, notadamente com Renê, Sir Stephen, Jacqueline e Anne-Marie.
Sade parece mais representativo dos principais usos da escritura pornográfica. Na medida em que a imaginação pornográfica tende a tornar cada pessoa intercambiável com outra e todas as pessoas intercambiáveis com coisas, não é funcional descrever uma pessoa da forma como O é descrita – em termos de um certo estado de sua vontade (da qual ela está tentando se descartar) e de seu entendimento. A pornografia é principalmente habitada por criaturas como a Justine de Sade, desprovidas de vontade e de inteligência e mesmo, aparentemente, de memória. Justine vive em um perpétuo estado de estupefação, jamais aprendendo alguma coisa das violações admiravelmente repetidas de sua inocência. Depois de cada nova traição, ela permanece a postos para um outro round, tão pouco instruída por sua experiência como sempre, pronta a confiar no próximo libertino dominador e a ter sua confiança recompensada por uma renovada perda de liberdade, pelas mesmas indignidades e pelos mesmos sermões blasfemos em louvor do vício.
Em sua maior parte, as figuras que desempenham o papel de objetos sexuais na pornografia são feitas da mesma massa que um “cômico” principal de uma comédia. Justine é como Cândido, que é também uma nulidade, um zero, um eterno inocente incapaz de aprender qualquer coisa de suas atrozes provações. A estrutura usual da comédia, que apresenta uma personagem como um centro imóvel em meio ao ultraje (Buster Keaton é A Imagem clássica), brota repetidamente na pornografia. Suas personagens, como as da comédia, são vistas somente do exterior, a partir de seu comportamento. Por definição, não podem ser observadas em profundidade, de modo tão verídico que envolva os sentimentos do público. Na maioria das comédias, a graça reside precisamente na disparidade entre o sentimento atenuado ou anestesiado e um acontecimento ultrajante. A pornografia opera de uma maneira semelhante. O resultado produzido por um tom inexpressivo, pelo que aparece ao leitor em um estado mental comum como a inacreditável sub-reação dos agentes eróticos às situações em que são situados, não é a liberação da risada. Em vez disso, é a liberação da reação sexual, originalmente voyeurista, mas que, é provável, necessita ser assegurada por uma identificação direta subjacente com um dos participantes do ato sexual.
A insipidez emocional da pornografia não constitui, portanto, nem uma falência de talento artístico, nem um indicio de desumanidade básica. O estímulo de uma resposta sexual no leitor exige isso. Apenas na ausência de emoções diretamente afirmadas pode o leitor de pornografia encontrar espaço para suas próprias respostas. Quando o fato narrado já vem revestido com os sentimentos explicitamente declarados do autor, pelos quais o leitor pode ser despertado, torna-se então mais difícil ser estimulado pelo próprio fato.(*)
A comédia do cinema mudo oferece muitos exemplos de como o princípio formal da agitação constante ou do moto-contínuo (as comédias-pastelão) e o do sujeito inexpressivo convergem realmente para o mesmo fim – um amortecimento, uma neutralização ou um distanciamento das emoções do público, de sua capacidade de se identificar em uma forma “humana” e de efetuar juízos morais sobre situações de violência. O mesmo princípio está em operação em toda pornografia. Isso não significa que as personagens na pornografia não possam de forma concebível possuir quaisquer emoções. Elas podem. Mas os princípios de sub-reação e de agitação frenética tornam o clima emocional auto-anulador, de modo que o tom básico da pornografia é a ausência de sentimentos e de emoções.
Entretanto, é possível distinguir alguns graus dessa falta de sentimentos. Justine é o estereótipo do objeto sexual (invariavelmente feminino, uma vez que a maior parte da pornografia é escrita por homens, ou a partir do ponto de vista masculino estereotipado): uma vítima perplexa cuja consciência permanece inalterada por suas experiências. Porém O é uma conhecedora; seja qual for o preço, a dor e o medo, é grata pela oportunidade de ser iniciada no mistério, que é a perda do eu. O aprende, sofre, modifica-se. Passo a passo, torna-se cada vez mais o que é, um processo idêntico ao esvaziamento de si própria. Na visão de mundo apresentada por História de O, o bem mais elevado é a transcendência da personalidade. O movimento da trama não é horizontal, mas uma espécie de ascensão através da degradação. O não somente passa a ser idêntica a sua disponibilidade sexual, como deseja atingir a perfeição de se transformar num objeto. Sua condição, se pode ser caracterizada como de desumanização, não deve ser entendida como um subproduto de sua escravidão a Renê, a Sir Stephen e ao outro homem em Roissy, mas como o ponto principal de sua situação, algo que ela busca e por fim alcança. A Imagem final de sua realização aparece na última cena do livro: O é levada a uma festa, mutilada, acorrentada, irreconhecível, fantasiada (como uma coruja) – tão convincentemente desumanizada, que nenhum dos convidados pensa em se dirigir a ela de modo direto.
A busca de O resume-se, com concisão, na expressiva letra que lhe serve de nome. “O” sugere uma caricatura de seu sexo, não de seu sexo individual mas simplesmente da mulher, e também equivale a nada. Contudo o que História de O revela é um paradoxo espiritual, o do vazio preenchido e da vacuidade que é também um plenum. A força do livro repousa exatamente na angústia despertada pela presença contínua desse paradoxo. “Pauline Réage” levanta, de um modo muito mais orgânico e sofisticado que o realizado por Sade, com suas desgraciosas exposições e discursos, o problema da condição da própria personalidade humana. Todavia, enquanto Sade interessa-se pela eliminação da personalidade – do ponto de vista do poder e da liberdade –, o autor de História de O preocupa-se com a eliminação da personalidade – do ponto de vista da felicidade. (A afirmação mais próxima desse tema na literatura inglesa: certas passagens de The Lost Girl, de Lawrence.).
Entretanto, para que o paradoxo ganhe real significado, o leitor deve compartilhar de uma certa visão de sexo, diferente da que é sustentada pelos membros mais iluminados da comunidade. A vi são dominante – um amálgama de idéias rousseaunianas, freudianas e do pensamento social liberal – enfoca o fenômeno do sexo como uma fonte perfeitamente inteligível, embora de grande valor, para o prazer físico e emocional. As dificuldades que possam advir originam-se da longa deformação dos impulsos sexuais administrada pela cristandade ocidental, cujos danos mais graves quase todos, nessa cultura, carregam. Em primeiro lugar, a culpa e a ansiedade. Em seguida, a redução das capacidades sexuais – conduzindo, se não à virtual impotência ou à frigidez, pelo menos à exaustão da energia erótica e à repressão de muitos elementos naturais do apetite sexual (as “perversões”). Além disso, o transbordamento nas indiscrições públicas, em que as pessoas tendem a responder a notícias sobre os prazeres sexuais de outros com inveja, fascinação, repulsa e indignação rancorosa. É dessa contaminação da saúde sexual da cultura que se origina um fenômeno como a pornografia.
Não pretendo polemizar com o diagnóstico histórico contido nesse relato das deformações da sexualidade ocidental. Não obstante, o que me parece decisivo no complexo de visões sustentado pela maioria dos membros educados da comunidade é um pressuposto mais questionável: o de que o apetite sexual humano é, quando não-pervertido, uma função natural agradável; e o de que “o obsceno” é uma convenção, a ficção imposta sobre a natureza por uma sociedade convicta de que há algo de vil nas funções sexuais e, por extensão, no prazer sexual. São justamente tais pressupostos que são questionados pela tradição francesa representada por Sade, Lautréamont, Bataille e os autores de História de O e A Imagem. Seus trabalhos sugerem que “o obsceno” é uma noção primal do conhecimento humano, algo muito mais profundo que a repercussão de uma aversão doentia da sociedade ao corpo. A sexualidade humana é, à parte as expressões cristãs, um fenômeno altamente controverso e pertence, ao menos em potencial, mais às experiências humanas extremas que às comuns. Por domesticada que possa ser, a sexualidade permanece como uma das forças demoníacas na consciência do homem – impelindo-nos, de quando em quando, para perto de proibições e desejos perigosos, que abrangem do impulso de cometer uma súbita violência arbitrária contra outra pessoa ao anseio voluptuoso de extinção da consciência, à ânsia da própria morte. Mesmo no nível das simples sensação e disposição físicas, o ato sexual com certeza assemelha-se a ter um ataque epilético, pelo menos na mesma medida, se não mais, que comer uma refeição ou conversar com uma pessoa. Todo indivíduo sentiu (no mínimo na imaginação) o fascínio erótico da crueldade física e uma atração erótica em coisas vis e repulsivas. Tais fenômenos fazem parte do espectro genuíno da sexualidade, e, se não devem ser descritos como meras aberrações neuróticas, o retrato parece diferente do que é incentivado pela opinião pública esclarecida, bem como menos simples.
Seria possível defender plausivelmente que são razões bastante saudáveis as quais fazem a capacidade total para o êxtase no sexo ser inacessível para á maioria das pessoas – pois a sexualidade parece ser algo, como a energia nuclear, que se pode provar passível de domesticação para, em seguida, revelar o contrário. O fato de que poucas pessoas tenham regularmente, ou tenham alguma vez, experimentado suas capacidades sexuais a esse nível perturbador não significa que o extremo não é autêntico ou que a possibilidade jamais as assediou. (Depois do sexo, é provável que a religião seja o segundo recurso mais antigo disponível aos seres humanos para ampliar sua consciência. Todavia, entre as multidões de fiéis, o número dos que se aventuraram muito longe através desse estado de mente também deve ser consideravelmente limitado.) Existe, e pode-se demonstrar, alguma coisa esboçada com imperfeição e com potencial desorientador na capacidade sexual humana – pelo menos no que diz respeito à civilização. O homem, animal doentio, traz consigo um apetite que pode levá-lo à loucura. Essa é a compreensão de sexualidade (como algo além do bem e do mal, do amor, da sanidade; como um recurso para a provação e o rompimento dos limites da consciência) que informa o cânone da literatura francesa que venho analisando.
História de O, com seu projeto de transcender por completo a personalidade, pressupõe integralmente essa visão negra e complexa da sexualidade, tão afastada da visão esperançosa esposada pelo freudianismo americano e pela cultura liberal. A mulher a quem não é dado outro nome que O progride simultaneamente rumo a sua própria extinção como ser humano e à sua satisfação como ser sexual. É difícil imaginar como alguém poderia afirmar se existe ou não, de modo real ou empírico, qualquer coisa na “natureza” ou na consciência humana que suporte essa divisão. Mas parece compreensível que a possibilidade sempre perseguiu o homem, por mais acostumado que esteja a execrar tal cisão.
O projeto de O sanciona, em outra escala, aquele que se personifica na existência da própria literatura pornográfica. O que a literatura pornográfica faz é justamente estabelecer uma cunha entre a existência de uma pessoa enquanto ser humano completo e sua existência como ser sexual – enquanto na vida comum uma pessoa saudável é aquela que impede que tal lacuna se amplie. É normal nós não experimentarmos, pelo menos não querermos experimentar, nossa satisfação sexual como distinta de, ou oposta a, nossa satisfação pessoal. Mas talvez em parte elas sejam distintas, quer queiramos ou não. Na medida em que o sentimento sexual poderoso efetivamente envolve um grau obsessivo de atenção, ele inclui experiências nas quais uma pessoa pode sentir que está perdendo seu “eu”. A literatura que vai de Sade a essas obras recentes, passando pelo surrealismo, capitaliza esse mistério, isola-o e faz o leitor percebê-lo, convidando-o a participar dele.
Tal literatura é ao mesmo tempo uma invocação do erótico em seu sentido mais sombrio e, em certos casos, um exorcismo. O ânimo reverente e solene de História de O é convenientemente invariável; por sua vez, uma obra de estados de espírito misturados no mesmo tema, uma jornada rumo à alienação do eu diante do próprio eu, é o filme de Bufluel, L’Age d’Or. Enquanto forma literária, a pornografia opera com dois modelos: um equivalente à tragédia (como em História de O), em que o sujeito-vitima avança inexoravelmente no sentido da morte, e o outro equivalente à comédia (como em A Imagem), no qual a busca obsessiva do exercício sexual é recompensada por uma gratificação terminal, a união com o parceiro sexual desejado de maneira inigualável.
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Mais que qualquer outro, Bataille é o autor que apresenta um sentido negro do erótico, de seus perigos de fascinação e humilhação. Histoire de l’Oeil (publicado pela primeira vez em 1928) e Madame Edwarda(*) qualificam-se como textos pornográficos até onde seu tema é uma busca sexual exclusiva que aniquila toda consideração das pessoas estranhas a seus papéis na dramaturgia sexual, e na medida em que tal busca é descrita graficamente. Mas essa descrição não transmite a extraordinária qualidade desses livros. A simples explicitação dos órgãos e atos sexuais não é necessariamente obscena; apenas passa a sê-lo quando é realizada em um tom particular, quando adquiriu uma certa ressonância moral. Ocorre que o número esparso de atos sexuais e profanações semi-sexuais relatados nas novelas de Bataille dificilmente pode competir com a interminável inventividade mecanicista de Os 120 Dias de Sodoma. Todavia, em virtude de Bataille possuir um sentido mais fino e profundo de transgressão, o que ele descreve parece de certa forma mais forte e ultrajante que as mais lascivas orgias encenadas por Sade.
Uma das razões pela qual Histoire de l’Oeil e Madame Edwarda causam impressão tão poderosa e desconcertante é o fato de Bataille entender, com mais clareza do que qualquer outro escritor, que o tema da pornografia não é, em última instância, o sexo, mas a morte. Não pretendo dizer que toda obra pornográfica fale, de forma aberta ou velada, da morte. Somente as obras que enfrentam essa inflexão específica e mais aguda dos temas da lúxuria, do “obsceno”, é que o fazem. É para as gratificações da morte, sucedendo e ultrapassando as de Eros, que toda busca verdadeiramente obscena se dirige. (Um exemplo de obra pornográfica cujo tema não é o “obsceno”: Trois Filles de leur Mère, a alegre saga de insaciabilidade sexual de Louys. A Imagem representa um exemplo menos nítido. Embora as transações enigmáticas entre as três personagens sejam portadoras de um senso do obsceno – mais como uma premonição, uma vez que o obsceno é reduzido a apenas uma parte constituinte do voyeurismo –, o livro tem um inequívoco final feliz, com o narrador finalmente unido a Claire. Mas História de O toma a mesma linha de Bataille, apesar de um pequeno jogo intelectual no fim: o livro termina de modo ambíguo, com diversas linhas destinadas a mostrar que existiam duas versões de um último capítulo, em uma das quais O recebia a permissão de Sir Stephen para morrer, quando ele estava prestes a descartar-se dela. Ainda que esse duplo final repita satisfatoriamente a abertura do livro, em que duas versões “do mesmo começo” são oferecidas, não é capaz, segundo penso, de diminuir a sensação do leitor de que está fadada à morte, sejam quais forem as dúvidas que o autor expresse sobre sua sina.)
Bataille compôs a maioria de seus livros, a música de câmara da literatura pornográfica, na forma de recital (às vezes acompanhado por um ensaio). O tema unificador é sua própria consciência, uma mente em agudo e implacável estado de agonia; no entanto, na mesma medida em que uma mente igualmente extraordinária em uma época anterior poderia ter escrito uma teologia da agonia, Bataille escreveu uma erótica da agonia. Pretendendo relatar alguma coisa sobre as fontes autobiográficas de suas narrativas, ele acrescentou a Histoire de l’Oeil várias imagens vívidas extraídas de sua própria infância insultuosamente terrível. (Uma lembrança: seu pai, cego, sifilítico e demente, procurando urinar sem consegui-lo.) O tempo, explica, neutralizou essas lembranças; depois de muitos anos, elas perderam grandemente o poder que tinham e “somente podem vir à luz outra vez de modo deformado, dificilmente reconhecível, tendo, no curso dessa deformação, assumido um significado obsceno”. A obscenidade, para Bataille, revive com simultaneidade suas experiências mais dolorosas e marca uma vitória sobre aquela dor. O obsceno, isto é, a extremidade da experiência erótica, é a raiz de energias vitais. Os seres humanos, diz ele no ensaio que acompanha Madame Edwarda, vive apenas através do excesso. E o prazer depende da “perspectiva”, ou do entregar-se a um estado de “ser aberto”, aberto à morte bem como à alegria. A maioria das pessoas procura sobrepujar seus próprios sentimentos; pretende ser receptiva ao prazer mantendo o “horror” à distância. Isso é tolice, de acordo com Bataille, uma vez que o horror reforça a “atração” e excita o desejo.
Aquilo que Bataille expõe na experiência erótica extrema é sua conexão subterrânea com a morte. Ele não transmite essa visão urdindo atos sexuais cujas conseqüências são mortíferas, espalhando corpos por suas narrativas. (Na terrível Histoire de l’Oeil, por exemplo, apenas uma pessoa morre; e o livro termina com os três aventureiros sexuais, após se entregarem à orgia em seu caminho através da França e Espanha, adquirindo um iate em Gibraltar para continuar suas infâmias em outras partes.) Seu método mais eficaz é investir cada ação com um peso, uma gravidade perturbadora, que parece autenticamente “mortal”.
Todavia, a despeito das óbvias diferenças de escala e elegância de execução, as concepções de Sade e Bataille guardam algumas semelhanças. Como Bataille, Sade não era tanto um sensorialista, mas alguém com um projeto intelectual: explorar o âmbito da transgressão. E compartilha com Bataille a mesma identificação última de sexo e morte. Mas Sade jamais podia ter concordado com Bataille em que “a verdade do erotismo é trágica”. As pessoas muitas vezes morrem nos livros de Sade, porém tais mortes sempre parecem irreais. Elas não são mais convincentes do que as mutilações infligidas durante as orgias noturnas, das quais as vítimas se recuperam por completo na manhã seguinte após usarem um bálsamo milagroso. Da perspectiva de Bataille, um leitor não pode evitar ser pego de surpresa pela inverossimilhança de Sade sobre a morte. (Por certo, vários livros pornográficos muito menos interessantes e acabados que os de Sade partilham desse traço.)
Na verdade, seria possível especular que a fatigante repetitividade dos livros de Sade é a conseqüência de sua incapacidade imaginativa para confrontar a meta inevitável, ou o paraíso, de uma aventura realmente sistemática da imaginação pornográfica. A morte é o único fim para a odisséia da imaginação pornográfica quando ela se torna sistemática; vale dizer, quando ela se centra nos prazeres da transgressão, e não no mero prazer. Como não chega, ou não podia chegar a seu fim, Sade protela: multiplica e aumenta sua narrativa; reduplica tediosamente as permutas e combinações orgiásticas. E seus alter-egos ficcionais interrompem com regularidade um turno de estupro ou sodomia para expor às vítimas suas últimas reelaborações de extensas cantilenas sobre o significado real do “lluminismo” – sobre a desagradável verdade quanto a Deus, à natureza, à sociedade, à individualidade e à virtude. Bataille procura evitar qualquer coisa que se assemelhe aos contra-idealismos, que são as blasfêmias de Sade (e que, assim, perpetuam o banido idealismo por trás dessas fantasias); suas blasfêmias são autônomas.
Os livros de Sade, dramas musicais wagnerianos da literatura pornográfica, não são sutis ou compactos. Bataille atinge seus efeitos com meios muito mais econômicos: um conjunto de câmara de personagens não-intercambiáveis, ao invés da multiplicação operística de virtuoses sexuais e vítimas da profissão, oferecida por Sade. Bataille apresenta suas negativas radicais por meio da extrema concisão. O ganho, aparente em cada página, habilita sua magra obra e seu pensamento gnômico a ir mais longe que os de Sade. Mesmo na pornografia, menos pode ser mais.
Bataille também ofereceu soluções distintamente originais e efetivas a um problema perene da narrativa pornográfica: a finalização. O procedimento mais comum tem sido concluir de um modo que não frustre qualquer necessidade interna. Assim, Adorno podia considerar como a marca característica da pornografia o fato de esta não ter nem começo, nem meio, nem fim: mas não é tudo. As narrativas pornográficas tem efetivamente um término: sempre abrupto e, pelos padrões tradicionais do romance, imotivado. Isso não é necessariamente digno de objeção. (A descoberta, a meio caminho, em um romance de ficção científica, de um planeta alienígena pode ser igualmente abrupta e desmotivada.) O caráter abrupto, uma realidade endêmica dos encontros, bem como dos encontros renovados de maneira crônica, não é algum defeito da narração pornográfica que se poderia desejar remover para que as obras se qualificassem como literatura. Esses traços são constitutivos da própria imaginação ou visão de mundo intrínseca à pornografia, e suprem, em muitos casos, exatamente o final que é necessário.
Mas isso não exclui outros tipos de finais. Um traço notável de Histoire de l’Oeil e, em menor medida, de A Imagem, consideradas obras de arte, é seu evidente interesse em gêneros mais sistemáticos ou rigorosos de finais, que ainda continuam no âmbito da imaginação pornográfica – não seduzidos pelas soluções de uma ficção mais realista ou menos abstrata. Sua solução, tomada de maneira genérica, é construir uma narrativa que, desde o início, apresenta um controle mais rigoroso, tornando-se menos espontânea e prodigamente descritiva.
Em A Imagem, a narrativa é dominada por uma metáfora única, “A Imagem” (ainda que o leitor não se veja capaz de compreender todo o significado do título antes do fim do romance). No início, a metáfora denota ter uma nítida aplicação singular. “Imagem” parece significar objeto “plano”, ou “superfície bidimensional”, ou “reflexo passivo” – tudo isso em referência à moça Anne, a qual Claire instruiu o narrador a usar livremente para seus propósitos sexuais, transformando-a em “uma perfeita escrava”. Mas a narrativa é interrompida exatamente na metade (na “Parte V”, num livro pequeno, de dez partes) por uma cena enigmática que introduz um outro sentido de “imagem”. Claire, sozinha com o narrador, mostra-lhe uma série de estranhas fotografias de Anne em situações obscenas; e essas são descritas de forma a insinuar um mistério naquilo que havia sido uma situação brutal e direta, embora sem motivação aparente. A partir dessa censura, até o final do livro, o leitor terá de simultanemante carregar o conhecimento da situação “obscena” ficcionalmente real sendo descrita e manter-se atento às pistas de uma reflexão ou duplicação oblíqua daquela situação. Essa carga (as duas perspectivas) será aliviada apenas nas últimas páginas, quando, como propõe o título da parte final, “Tudo se Resolve”. O narrador descobre que Anne não é o joguete erótico de Claire doado gratuitamente a ele, mas a “imagem” ou “projeção” de Claire, enviada antecipadamente para ensinar-lhe como amá-la.
A estrutura de Histoire de l’Oeil é igualmente rigorosa e de alcance mais ambicioso. Ambos os romance estão na primeira pessoa; nos dois, o narrador é masculino e constitui um dos lados de um triângulo cujas inter-relações sexuais configuram a história do livro. No entanto as duas narrativas são organizadas sobre princípios muito diferentes. “Jean de Berg” descreve como chega a ser conhecida uma coisa que até então o narrador não conhecia; todas as partes da ação são indícios, fragmentos de evidência, e o final é uma surpresa. Bataille está descrevendo uma ação que é na realidade intrapsíquica: três pessoas que compartilham (sem conflitos) uma única fantasia, a representação de uma vontade perversa coletiva. Em A Imagem, a ênfase recai no comportamento, que é opaco, ininteligível. Em História de O, a ênfase está antes de tudo na fantasia e, em seguida, em sua correlação com algum ato espontaneamente “inventado”. O desenvolvimento da narrativa segue as fases da representação. Bataille traça os estágios da gratificação de uma obsessão erótica que assalta inúmeros objetos comuns. Seu princípio de organização é, portanto, espacial: uma série de coisas, arranjadas numa seqüência definida, é capturada e explorada, em algum ato erótico convulsivo. A manipulação obscena ou a profanação de tais objetos, e das pessoas em suas proximidades, constitui a ação da novela. Quando o último objeto (o olho) é utilizado em uma transgressão mais ousada que todas as precedentes, a narrativa termina. Não pode haver nenhuma revelação ou surpresa na história, nenhum “conhecimento” novo, apenas intensificações complementares do que já é conhecido. Esses elementos, à primeira vista não-relacionados, estão na verdade vinculados; na verdade, são todos versões de uma mesma coisa. O ovo no primeiro capítulo é simplesmente a versão mais antiga do globo ocular roubado do espanhol no último.
Cada fantasia erótica específica é também uma fantasia geral (de desempenhar o que é “proibido”) que gera uma atmosfera excedente de cruciante e infatigável intensidade sexual. Em certos momentos, o leitor parece ser testemunha de uma impiedosa satisfação orgiástica; em outros, parece apenas estar na presença da progressão sem remorsos do negativo. As obras de Bataille, melhor que quaisquer outras que conheço, indicam as possibilidades estéticas da pornografia como uma forma de arte: Histoire de l’Oeil, como a mais artisticamente bem-acabada de todas as ficções pornográficas em prosa que já li, e Madame Edwarda, como a mais original e poderosa do ponto de vista intelectual.
Falar das possibilidades estéticas da pornografia como forma de arte e uma forma de pensamento pode parecer insensato ou afetado quando se considera que vidas marcadamente miseráveis levam as pessoas com uma obsessão sexual especializada full-time. Contudo, eu argumentaria que a pornografia oferece algo mais que as verdades de pesadelo individual. Por convulsiva e repetitiva que essa forma de imaginação possa ser, gera sem dúvida uma visão de mundo capaz de reivindicar o interesse (especulativo, estético) de gente não-erotômana. Na verdade, tal interesse reside naquilo que é habitualmente desconsiderado como os limites do pensamento pornográfico.
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As características proeminentes de todos os produtos da imaginação pornográfica são a sua energia e o seu absolutismo.
Os livros denominados pornográficos em geral são aqueles cuja preocupação primária, exclusiva e tirânica é com a descrição de “intenções” e “atividades” sexuais. Talvez também se pudesse dizer “sentimentos” sexuais, se a palavra não parecesse redundante. Os sentimentos das personagens apresentados pela imaginação pornográfica apresentam-se, em qualquer momento dado, ou idênticos a seu “comportamento”, ou uma fase preparatória, a da “intenção”, prestes a passar ao “comportamento”, a menos que seja fisicamente frustrada. A pornografia usa um tosco e reduzido vocabulário de sentimentos, sempre relacionado às perspectivas de ação: sentimento que se gostaria de pôr em ação (luxúria), sentimento que não se gostaria de pôr em ação (vergonha, medo, aversão). Não existem sentimentos gratuitos ou não-funcionais, não há devaneios, especulativos ou imagísticos, que sejam irrelevantes ao assunto em questão. Assim, a imaginação pornográfica habita um universo que é, por mais repetitivos os incidentes que ocorrem em seu interior, incomparavelmente econômico. Aplica-se o critério de relevância mais estrito possível: tudo deve apontar para a situação erótica.
O universo proposto pela imaginação pornográfica é um universo total. Tem o poder de ingerir, metamorforsear e traduzir todas as preocupações com que é alimentado, convertendo tudo à única moeda negociável do imperativo erótico. Toda ação é concebida como uma série de intercâmbios sexuais. De tal modo, a razão pela qual a pornografia se recusa a fazer distinções fixas entre os sexos, ou a permitir que qualquer gênero de preferência ou proibição sexual permaneça, pode ser explicada “estruturalmente”. A bissexualidade, o desrespeito pelo tabu do incesto e outros traços similares comuns às narrativas pornográficas funcionam para multiplicar as possibilidades de troca. No plano ideal, seria possível a toda pessoa manter relação sexual com qualquer outra.
Por certo, a imaginação pornográfica não pode ser vista como a única forma de consciência que propõe um universo total. Uma outra é o tipo de imaginação que gerou a moderna lógica simbólica. No universo total proposto pela imaginação dos lógicos, todas as afirmações podem ser derrubadas ou arrasadas a fim de tornar possível reapresentá-las na forma da linguagem lógica; as partes da linguagem comum que não servem são simplesmente abandonadas. Alguns dos notórios estados da imaginação religiosa, para recorrer a outro exemplo, operam da mesma maneira canibalista, engolindo todos os materiais disponíveis para retraduzi-los em fenômenos saturados de polaridades religiosas (sagrado e profano etc.).
O último exemplo, por razões óbvias, toca intimamente no assunto em questão. As metáforas religiosas aparecem em grande número numa parcela importante da literatura erótica moderna (notadamente em Genet) e em algumas obras da literatura pornográfica. História de O faz amplo uso de metáforas religiosas para descrever a provação que O atravessa. O “queria crer”. Sua drástica situação de total servidão pessoal àqueles que a utilizam sexualmente é, repetidas vezes, descrita como um modo de salvação. Com angústia e ansiedade, ela renuncia a si própria – e “doravante não houve mais hiatos, nem tempo útil, ou remissão”. Embora tenha perdido inteiramente sua liberdade, O conquistou o direito de participar daquilo que descreveu como um rito sacramental virtual.
A palavra “aberta” e a expressão “abrir suas pernas”, nos lábios de seu amante, vinham carregadas com tal força e desassossego, que ela jamais podia ouvi-Ias sem experimentar uma espécie de prostração interna, uma submissão sagrada, como se um deus, e não ele, lhe tivesse falado.
Temia o açoite e outros castigos cruéis antes de lhe ser infligidos; “todavia, quando tudo terminava, ela estava feliz de ter passado por isso, ainda mais feliz se tudo fora especialmente cruel e prolongado”. O açoite, a mutilação e o ferro em brasa são descritos (do ponto de vista de sua consciência) como ordálias rituais que testam a fé de alguém que se inicia em uma disciplina espiritual ascética. A “perfeita submissão” que seu amante original e depois Sir Stephen exigem dela faz lembrar a extinção do eu, explicitamente requerida de um noviço jesuíta ou de um aprendiz zen. O é “essa pessoa absorta que renunciou a sua vontade a fim de ser totalmente refeita”, a fim de ser feita para servir uma vontade muito mais poderosa e autoritária que a sua.
Como seria de se esperar, o caráter direto das metáforas religiosas em História de O evocou algumas leituras correspondentemente diretas do livro. O romancista Mandiargues, cujo prefácio precede o de Paulhan na tradução americana, não hesita em descrever História de O como “uma obra mística” e, portanto, “estritamente falando, não um livro erótico”. Aquilo que História de O relata “é uma completa transformação espiritual, o que outros denominariam uma ascesis”. Contudo a questão não é tão simples.
Mandiargues parece certo ao descartar uma análise psiquiátrica do estado mental de O que reduziria o tema do livro a, digamos, “masoquismo”. Como diz Paulhan, “o ardor da heroína” é totalmente inexplicável em termos do vocabulário psiquiátrico convencional. O fato de que o romance emprega alguns dos motivos e artifícios convencionais do teatro do sadomasoquismo merece uma explicação específica. Mas Mandiargues caiu em um erro quase tão redutivo e apenas um pouco menos vulgar. Seguramente, a única alternativa às reduções psiquiátricas não é o vocabulário religioso. Mas o fato de existirem apenas duas alternativas em perspectiva, testemunha, mais uma vez, a arraigada difamação do âmbito e da seriedade da experiência sexual, que ainda domina nossa cultura, como toda a sua tão propagada permissividade recente.
Em minha visão, “Pauline Réage” escreveu um livro erótico. A noção implícita, em História de O, de que Eros é um sacramento não representa a “verdade” por trás do sentido literal (erótico) do livro (os ritos lascivos de escravização e degradação infligidos a O), mas, exatamente, uma metáfora para isso. Por que dizer algo mais forte, quando a afirmativa não pode na realidade expressar qualquer coisa mais forte? Porém, a despeito da virtual incompreensibilidade, para a maioria das pessoas educadas, da experiência substantiva subjacente ao vocabulário religioso, hoje em dia, há uma persistente devoção face à imponência de emoções que cabem em tal vocabulário. A imaginação religiosa sobrevive para a maior parte das pessoas não apenas como o principal, mas virtualmente como o único exemplo digno de crédito de uma imaginação operante em uma forma total.
Não é de se admirar, assim, que as formas novas ou radicalmente renovadas da imaginação total, que surgiram no século passado (em especial aquelas do artista, do erotômano, do revolucionário de esquerda e do louco), tenham ofuscado de maneira crônica o prestígio do vocabulário religioso. E as experiências totais, de que existem muitos tipos, tendem com freqüência a ser apreendidas somente como revivescências ou traduções da imaginação religiosa. A busca de um novo modo de discurso, no nível mais sério, ardente e entusiástico, evitando a encapsulação religiosa, é uma das tarefas primordiais do pensamento futuro. No estado em que se encontram as coisas, onde tudo, desde a História de O até Mao, é reabsorvido na incorrigível sobrevivência do impulso religioso, todas as opiniões e todos os sentimentos tornam-se desvalorizados. (Hegel efetuou talvez a mais grandiosa tentativa de criar um vocabulário pósreligioso, a partir da filosofia, que dominaria os tesouros de paixão e de credibilidade, e de adequação emotiva, que foram reunidos no vocabulário religioso. Mas seus seguidores mais interessantes solaparam resolutamente a linguagem meta-religiosa abstrata a que ele legou seu pensamento, para se concentrarem, ao contrário, nas aplicações sociais e práticas específicas de sua forma revolucionária de metodologia, o historicismo. O fracasso de Hegel repousa, como um casco de navio imenso e perturbador, na paisagem intelectual. E ninguém desde então teve suficiente grandeza, imponência ou energia para empreender a tarefa outra vez.)
E assim permanecemos, adernando em meio às nossas variadas opções de tipos de imaginação total, de espécies de completa seriedade. Talvez o reflexo espiritual mais profundo da carreira da pornografia em sua fase “moderna” ocidental, que aqui consideramos (a pornografia no Oriente ou no mundo muçulmano é algo muito diferente), seja essa gigantesca frustração da paixão e da seriedade humanas, desde que a antiga imaginação religiosa, com seu seguro monopólio da imaginação total, começou a ruir, no final do século XVIII. O ridículo e a ausência de talento da maioria dos textos pornográficos ficam evidentes para qualquer pessoa a eles exposta. O que não se tem salientado sobre os produtos típicos da imaginação pornográfica é o seu pathos. Quase toda a pornografia (e as obras aqui discutidas não podem ficar de fora) aponta para algo mais amplo que o simples dano sexual. Trata-se da traumática incapacidade da sociedade capitalista moderna de fornecer saídas autênticas ao perene instinto humano para as obsessões visionárias inflamadas, assim como de satisfazer o apetite de modos de concentração e de seriedade exaltados e autotranscendentes. A necessidade dos seres humanos de transcender “o pessoal” não é menos profunda que a de ser uma pessoa, um indivíduo. No entanto, nossa sociedade atende pobremente a tal necessidade. Ela provê sobretudo vocabulários demoníacos onde situá-la e a partir dos quais iniciar a ação e construir ritos de comportamento. Oferece uma opção entre vocabulários de pensamento e ação que não são meramente autotranscendentes mas autodestrutivos.
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Entretanto a imaginação pornográfica não deve ser entendida apenas como uma forma de absolutismo psíquico – em que alguns de seus produtos poderiam ser encarados (no papel de connoisseur, em vez de consumidor) com mais simpatia, curiosidade intelectual ou sofisticação estética.
Em diversos pontos deste ensaio aludi à possibilidade de que a imaginação pornográfica expresse algo digno de ser ouvido, conquanto em uma forma degradada e, com freqüência, irreconhecível. Defendi que essa forma espetacularmente confinada da imaginação humana tem, não obstante, seu acesso peculiar a alguma verdade (sobre o sexo, a sensibilidade, a personalidade individual, o desespero, os limites), que pode ser partilhada quando projeta a si própria em arte. (Toda pessoa, ao menos nos sonhos, habitou o mundo da imaginação pornográfica por algumas horas, ou dias, ou mesmo por períodos ainda mais longos de sua vida; porém somente os habitantes permanentes fabricam os fetiches, os troféus, a arte.) Esse discurso, que se poderia chamar “a poesia da transgressão”, é também conhecimento. Aquele que transgride não apenas quebra uma norma. Ele vai a algum lugar onde os outros não vão; e conhece algo que eles não sabem.
A pornografia, considerada como uma forma artística ou criadora de arte na imaginação humana, é uma expressão daquilo que William James chamou “mentalidade mórbida”. Mas James, sem dúvida, estava correto quando propôs, como parte de sua definição de mentalidade mórbida, que essa abrangia “uma escala mais ampla” de experiência que a mentalidade saudável.
O que se pode dizer, contudo, às inúmeras pessoas sensíveis e suscetíveis que acham deprimente o fato de toda uma biblioteca de material de leitura pornográfica ter se tornado, nos últimos anos, tão facilmente disponível aos jovens, em forma de brochura? Apenas uma coisa, talvez: que sua apreensão é justificada, mas quiçá exagerada. Não me refiro aos lamuriadores costumeiros, aqueles que acham que como o sexo, acima de tudo, é “sujo”, também o são os livros que se divertem com ele (“sujo”, de uma forma que, aparentemente, um genocídio exibido todas as noites na TV não é). Resta ainda uma minoria considerável de pessoas que se opõe ou tem aversão à pornografia não porque ache que ela é “suja”, mas por saber que pode ser uma muleta para o psicologicamente deformado e uma brutalidade para o moralmente inocente. Eu também sinto uma aversão pela pornografia por razões semelhantes e as conseqüências de sua oferta crescente me preocupam. Entretanto tal cuidado não está de certa forma deslocado? O que efetivamente está em jogo? Uma preocupação com os usos do próprio conhecimento. Há um sentido em que todo conhecimento é perigoso: nem todas as pessoas estão na mesma condição como conhecedoras, ou como conhecedoras em potencial. Talvez a maioria das pessoas não necessite de “uma escala mais ampla de experiência”. É possível que, sem uma preparação psíquica sutil e extensa, qualquer ampliação de experiência e de conhecimento seja destrutiva para a maior parte das pessoas. Então, seria preciso perguntar o que justificaria a imprudente confiança ilimitada que depositamos na atual disponibilidade maciça de outros gêneros de conhecimento, ou a nossa aquiescência otimista na transformação e extensão das capacidades humanas pela máquina. A pornografia é apenas um item dentre as muitas mercadorias perigosas que circulam nesta sociedade e, por mais sem atrativos que seja, uma das menos letais, a menos custosa para a comunidade em termos de sofrimento humano. Com exceção, talvez, de um pequeno círculo de intelectuais na França, a pornografia é um departamento inglório e, em geral, desprezado, da imaginação. Seu status medíocre é a própria antítese do considerável prestígio espiritual gozado por vários itens que são muito mais nocivos.
Em última análise, o lugar que atribuímos à pornografia depende dos propósitos que estabelecemos para nossa própria consciência, para nossa própria experiência. Mas o objetivo que A adota para sua consciência pode não ser aquele que ele aprecie ver B advogar, desde que julga que B não é suficientemente qualificado, experiente, ou sutil. E B pode ficar consternado ou mesmo enraivecido pelo fato de A adotar propósitos que ele próprio professa; quando A os sustenta, eles se tornam presunçosos ou banais. É provável que essa crônica desconfiança mútua das capacidades de nossos próximos (que sugere, com efeito, uma hierarquia de competência com relação à consciência humana) jamais se resolva de forma para todos satisfatória. Na medida em que a qualidade da consciência humana varia tão amplamente, coma haveria de ser diferente? Num ensaio que escreveu sobre o tema alguns anos atrás, Paul Goodman afirmou: “A questão não é saber se se trata de pornografia, mas a qualidade da pornografia”. Isso é correto e seria possível estender bastante mais o pensamento. A questão não é saber se se trata de consciência ou de conhecimento, mas a qualidade da consciência e do conhecimento. E isso exige considerar a qualidade ou agudeza do problema do homem – o modelo mais problemático de todos. Não parece incorreto dizer que, nesta sociedade, a maioria das pessoas que não é louca ativa, é, na melhor das hipóteses, lunática corrigida, ou potencial. Contudo é possível supor que alguém aja de acordo com esse conhecimento, ou conviva genuinamente com ele? Se há tantos que oscilam à beira do assassinato, da desumanização, da deformidade e do desespero sexuais, e se devêssemos agir de acordo com esse pensamento, então uma censura que jamais imaginaram os inimigos indignados da pornografia pareceria adequada. Se é esse o caso, não somente a pornografia mas todas as formas de arte e conhecimento autênticas – em outras palavras, todas as formas de verdade – são suspeitas e perigosas.
(1967)
Publicada originalmente em: A Vontade Radical – Estilos. São Paulo: Cia das Letras, 1987. Págs. 41-76.
(daqui) my wild italics.
light gazing, ışığa bakmak
Thursday, June 19, 2008
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Publicado por Ana V. às 8:02 PM
TAGS Biblioteca de Babel
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