há um certo pudor em inventar histórias. realismo apocalíptico simbólico, encontrei os termos. mas nesta janela não havia apocalipse. poderia dizer: e muito menos simbólico, mas de cifras sabia ela até demais. da sua janela de madeira, no primeiro andar de uma parede lisa de cimento, calculava centenas de cifras por dia. não que a rua fosse muito movimentada, apenas o reboliço normal de uma rua que tinha sido de campo e por onde passou depois uma estrada. sem passeios mas com gente, as suas cifras em movimento. não se lembrava desde quando decidira jogar este jogo, mas tinha sido certamente há muitos anos atrás. e, afinal, o seu diagnóstico tinha sido claro: dependerá sempre de terceiros para os cuidados diários.
cifrar os vultos que passavam apressados tinha sido o dobrar do tronco numa paisagem árida de árvores curvas pelo vento. a inclinação dos troncos em arco até ao chão era como o desvio do seu olhar. sendo apenas marcas na paisagem, aquelas vidas já não lhe faziam diferença.
no início tinha sido complicado. queria sempre morder a melancia que uma mulher talhava. ou estar atrasada para o encontro para onde outra se apressava. cortar-se mesmo na faca que o talhante falhara. depois, passo a passo, entrara no jogo.
até aqui nada de extraordinário, meu caro Jorge, a evasão não é uma arte, antes uma prática comum. quando me falaste nela antevi logo um fim amaldiçoado, mas há tantos finais possíveis, o que é o mesmo que dizer que não há final ou que todos os fins estão em aberto. e isto, estou certa, não é mágica. certo dia deixaste de a ver e tu, com a tua tendência congénita para dar os bons dias a toda a gente, ficaste preocupado. não em demasia, mas com um mal estar ligeiro, de incerteza misturada com um receio vago. e nem sequer lhe sabias o nome.
dois passos em frente. || estaca. rrrrrrolar brevemente para o lado esquerdo, parar de repente. O// obstáculo. circular circular circular devagar. entra rápido da direita. <<< RUÍDO . || estaca de novo. uma sentinela no meu castelo de ouro, Jorge.
um dia deixou de estar na sua janela a rapariga do cabelo castanho. imediatamente se aventuraram prognósticos, intentaram-se as conjecturas mais fantásticas mas nem sempre as mais felizes. as cifras cercando a sua parede em linhas que não tinham sequência nenhuma. paravam e juntavam-se aqui, uma ia buscar outra, estacavam no meio de outras, rápidas, curvavam-se todas para logo se abrirem. uma segunda uma terceira, cifras duplicadas, quadruplicadas em desenhos mágicos, agora sim, pelo tabuleiro. e, sem saber como, curvavam-se as árvores todas em arco até ao chão.
um sorriso por detrás da cortina.
light gazing, ışığa bakmak
Thursday, October 16, 2008
à janela
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10 comments:
realismo mágico. e a arte de contar a vida comum.
eu não não não disse nada sobre mágico. :)
O tempo dos ciganos
inventar ,ou contar ?
contar é fácil :)
belo texto :))
decifrar a realidade ...
é uma talhada :)))
:))))))))))))) [replay]
ah ah noutra não me meto tão depressa ou ainda apanho uma indigestão ;)
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