light gazing, ışığa bakmak

Wednesday, January 14, 2009

a origem do cão das lágrimas e um passeio em Lisboa

"Meditam-se estas contradições enquanto se vai subindo a Rua do Alecrim, pelas calhas dos eléctricos ainda correm regueirinhos de água, o mundo não consegue estar quieto, é o vento que sopra, são as nuvens que voam, da chuva nem se fala, tanta tem sido. Ricardo Reis pára diante da estátua de Eça de Queirós, ou Queiroz, por cabal respeito da ortografia que o dono do nome usou, ai como podem ser diferentes as maneiras de escrever, e o nome ainda é o menos, assombroso é falarem estes a mesma língua e serem, um Reis, o outro, Eça, provavelmente a língua é que vai escolhendo os escritores que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver. Já as primeiras dificuldades começam a surgir, ou não serão ainda dificuldades, antes diferentes e questionadoras camadas do sentido, sedimentos removidos, novas cristalizações, por exemplo, Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia, parece clara a senteça, clara, fechada e conclusa, uma criança será capaz de perceber e ir ao exame repetir sem se enganar, mas essa mesma criança perceberia e repetiria com igual convicção um novo dito, Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade, e este dito, sim, dá muito mais que pensar, e saborosamente imaginar, sólida e nua a fantasia, diáfana apenas a verdade, se as sentenças viradas do avesso passarem a ser leis, que mundo faremos com elas, milagre é não endoidecerem os homens de cada vez que abrem a boca para falar. É instrutivo o passeio, ainda agora contemplámos o Eça e já podemos observar o Camões, a este não se lembraram de pôr-lhe versos no pedestal, e se um pusessem qual poriam. Aqui, com grave dor, com triste acento, o melhor é deixar o pobre amargurado, subir o que falta da rua, da Misericórdia, que já foi Mundo, infelizmente não se pode ter tudo nem ao mesmo tempo, ou mundo ou misericórdia. Eis o antigo Largo de S. Roque, e a igreja do mesmo santo, aquele a quem um cão foi lamber as feridas da peste, bubónica seria, animal que nem parece pertencer à espécie da cadela Ugolina, que só sabe dilacerar e devorar, dentro desta famosa igreja é que está a capela de S. João Baptista, a tal que foi encomendada a Itália pelo Sr. D. João V, tão renomado monarca, rei pedreiro e arquitecto por excelência, haja vista o convento de Mafra, e outrossim o aqueduto das Águas Livres, cuja verdadeira história ainda está por contar."

J. Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis



há livros em que os olhos vão de expresso, outros em que caminham numa marcha muito lenta. este é um deles, em cada página encontro coisas que nunca vi.
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engraçada a leitura desta obra como tragédia

5 comments:

Anonymous said...

:))

Ana V. said...

saudades de? .... por vezes de show must not go on... :)

Ana V. said...

"de"/"the" coisas

Anonymous said...

Há momentos que não se esquecem. :))

E depois há descontos no Continente, tenho mesmo de me lembrar de usar os 10%. :D

Ana V. said...

assim como que uma polaroid. nada como contar com o continente e começar o ano a poupar :)))

 
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