ler um ou dois parágrafos de Sebald dá-me mais prazer do que quase toda a literatura americana contemporânea junta e o quase foi para deixar alguma margem de manobra.
"Em Kritzendorf as casas nunca mais acabavam. Habitantes, não se viam. Estavam todos a almoçar, entretidos com pratos e talheres. Um cão atirava-se contra um portão de ferro pintado de verde, completamente fora de si, como se tivesse enlouquecido. Era um grande terra-nova preto cuja mansidão congénita tinha sido alterada por maus-tratos, solidão prolongada ou pela claridade cristalina da atmosfera. Na vivenda atrás do gradeamento nada mexia. Não veio ninguém à janela, nenhuma cortina se moveu. O animal tomava balanço uma e outra vez e atacava as grades. Só de vez em quando parava e olhava para nós que tínhamos parado ali, fascinados. Eu deitei na caixa do correio de folha presa ao portão do jardim um xelim pelas almas. Quando seguimos caminho, sentia nas pernas o frio do medo. Ernst parou ainda e voltou-se para o cão preto que entretanto se tinha calado e estava imóvel ao sol do meio-dia. Talvez devêssemos tê-lo deixado sair. Provavelmente, ter-nos-ia acompanhado, bem comportado, e o seu espírito maligno teria partido em busca de uma nova morada em Kritzendorf, teria até assombrado todos os habitantes de tal modo que nunca mais um deles seria capaz de pegar num garfo ou numa colher."
Sebald em Vertigens.Impressões.
light gazing, ışığa bakmak
Monday, January 24, 2011
confissão
Publicado por Ana V. às 12:56 PM
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2 comments:
esta cena é um tanto ou quanto soturna mas está tão bem escrito q por momentos consegui "ver" tudo.
Na minha adolescência era de tal forma viciada em livros que era capaz de caminhar pela rua e ler ao mesmo tempo até acabar de ler. Actualmente não tenho muita paciência, chego ao meio e passo directamente ao último capítulo. O último q li era sobre uma mãe e a sua rotina, a monotonia do casamento e a suposta aventura extra conjugal q a autora nos faz acreditar q vai acontece, mas cuja personagem não tem coragem de concretizar.
margarida martins
Marg, como se costuma dizer e acho que é verdade, o tempo de atenção disponível baixou drasticamente desde que nos habituámos ao ecrã. penso que é preciso ir contra isso de todas as formas possíveis, se não quisermos viver numa espécie de superficialidade. de qualquer modo, escolher livros bons ajuda :)) beijinhos
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