light gazing, ışığa bakmak

Sunday, July 10, 2011

"A Rainha Louca", Alexandre Delgado, reabilitação de uma rainha



durante tanto tempo estive do lado de ler o que Alexandre Delgado tinha a dizer de concertos que de algum modo me estavam ligados, que é algo estranho ter eu agora algo a dizer sobre "A Rainha Louca", obra em que Alexandre Delgado está de corpo inteiro - libretista, compositor, direcção musical e até ponto das cantoras em palco. li todo o texto nos seus lábios, sorte de estar numa das laterais do Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém.

gostei da OrchestrUtópica, aqui dois quintetos, um de cordas outro de sopros, cravo, harpa e percussão, mas vibrei com a Rainha de Ana Ester Neves, excelente, envolvente, que me mudou a história. não conheço a peça de Miguel Rovisco (O Tempo Feminino) mas julgo que foi muito pouco alterada por Alexandre Delgado. D. Maria surge plena, uma personagem trágica que causa a maior empatia, humana e simbólica, na voz e na actuação de Ana Ester Neves. tudo se redefine para mim: que história é a nossa história, o que foi escrito, por quem e quais as suas motivações. o que se esperava desta rainha encurralada, viúva e mãe um filho morto. a figura da viúva, tão tristemente presente no meu dia, e da mãe que perdeu o filho, as perdas mais terríveis (como D. Amélia) são material de tragédia e da representação da dor (a dor feminina é a dor do mundo).

o coro das três outras mulheres (fantasticamente reflectidas na música que incorpora toda uma variedade de referências musicais do cómico, burlesco, satírico e grotesco) lembram-me as três bruxas de Macbeth, mas são mais do que um coro de tragédia. elas são o público contra o qual vemos a intimidade dolorosa da rainha solitária (a harpa e o cravo, do ritmo mais infantil ou encantatório, até à expressão de dissolução, demência, que prazer ouvir). tão a propósito, embora tenha sido escrita durante quinze anos da vida de Alexandre Delgado, a face da coisa pública: as referências ao povo português, à pobreza, à fome, ao lixo, à situação de marginalidade das classes mais baixas (e o som do fagote, tantas vezes e também aqui o som do grotesco).

["Outra particularidade reside num tecido musical repleto de citações. "Nem todo o público reconhecerá o tema da forja dos Nibelungos [do "Ouro do Reno" de Wagner], mas a 'Cavalgada das Valquírias' ou a 'Carmen' são inconfundíveis. Também não sei se os melómanos da música clássica e contemporânea, sempre tão sérios, identificarão de imediato o tema do John Williams usado no filme 'O Tubarão' [que aparece ligado ao Marquês de Pombal] ou o tema da Beatriz Costa da 'Aldeia da Roupa Branca' quando se refere a miséria do país", explica Delgado, que diz ter-se divertido muito a jogar com estas referências.", que divertimento e que estímulo de memórias musicais, um jogo com o público]

os meus momentos altos foram os de Ana Ester Neves (em lágrimas no final): o solo Desolado (Primeiro a solidão é como um deserto) e toda a cena quase final do aeróstato, cena de evasão para o sítio melhor do desejo, o seu eldorado.

a cena final, enérgica e carnal, sobre o véu de apatia da rainha ("a libertação total com a Rosa a dançar a fofa [dança setecentista afro-brasileira de forte sensualidade").

adoraria ter esta obra em disco para ver e rever muitas vezes mas - assim é a vida e assim é a arte do espectáculo: ocasiões únicas e irrepetíveis.


para ler (e aguardando que mais críticas sejam publicadas):
artigo de Yvette Centeno
artigo de Cristina Fernandes no Público
página de Alexandre Delgado na Ava Musical Editions

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