light gazing, ışığa bakmak

Tuesday, November 1, 2011

museu imaginário

"Um crucifixo românico não era, de início, uma escultura; a Madona de Cimabue não era, de início, um quadro; nem sequer a Atena de Fídias não era, de início, uma estátua.

O papel do museu na nossa relação com as obras de arte é tão considerável que temos dificuldade em pensar que ele não existe, nunca existiu, onde a civilização da Europa moderna é ou foi ignorada; e que existe entre nós há menos de dois séculos. O século XIX viveu dos museus; ainda vivemos deles, e esquecemos que impuseram ao espectador uma relação totalmente nova com a obra de arte. Contribuíram para libertar da sua função as obras de arte que reuniam, para transformar em quadros até mesmo os retratos. Se o busto de César, a estátua equestre de Carlos V, ainda são César e Carlos V, o duque de Olivares é simplesmente Velázquez. Que nos importa a identidade do Homem do Capacete ["once one of the most famous "Rembrandt" portraits, no longer attributed to the master", na wiki], ou do Homem da Luva? Chamam-se Rembrandt e Ticiano. O retrato começa por deixar de ser o retrato de alguém. Até ao século XIX, todas as obras de arte eram a imagem de algo que existia ou não existia, antes de serem obras de arte. Só aos olhos do pintor a pintura era pintura; e muitas vezes, era também poesia. E o museu suprime de quase todos os retratos (mesmo sendo eles de um sonho), quase todos os modelos, ao mesmo tempo que extirpa a função às obras de arte: não reconhece Paládio, nem santo, nem Cristo, nem objecto de veneração, de semelhança, de imaginação, de decoração, de posse; mas apenas imagens de coisas, diferentes das próprias coisas, e retirando desta diferença específica a sua razão de ser [my italic]. O museu é um confronto de metamorfoses.

Se a Ásia só recentemente conheceu a existência de museus, sob a influência e a direcção dos europeus, é porque, para o asiático, sobretudo para o cidadão do Extremo Oriente, contemplação artística e museu eram irreconciliáveis. Na China, a fruição das obras de arte começou por estar ligada à sua posse, excepto quando se tratava de arte religiosa; e, acima de tudo, estava ligada ao isolamento. As pinturas não eram expostas, mas mostradas, uma a uma, a um apreciador em estado de graça, contribuindo para alimentar ou aprofundar a comunhão com o mundo. Confrontar pinturas, operação intelectual, opõe-se completamente ao abandono que só a contemplação asiática permite; aos olhos da Ásia, o museu, se não for um local de ensino, só pode ser um concerto absurdo em que se sucedem e misturam, sem entreacto e sem fim, melodias contraditórias.

Há mais de um século que a nossa convivência com a arte não cessa de se intelectualizar. O museu impõe a discussão de cada uma das representações do mundo nele reunidas, uma interrogação sobre o que, precisamente, se reúne. Ao «prazer do olhar», a sucessão e a aparente contradição das escolas vieram acrescentar a consciência de uma busca apaixonada, de uma recriação do universo frente à Criação. Afinal, o museu é um dos locais que nos proporcionam a mais elevada ideia do homem. Mas os nossos conhecimentos são mais extensos do que os nossos museus; o visitante do Louvre sabe que não encontra ali significativamente nem Goya, nem os grandes ingleses, nem a pintura de Miguel Ângelo, nem Piero della Francesca, nem Grünewald; dificilmente Vermeer. Onde a obra de arte não tem outra função senão a de ser obra de arte, numa época em que a exploração artística do mundo prossegue,, a reunião de tantas obras-primas, e a ausência de tantas outras obras-primas, convoca, por imaginação, todas as obras-primas. Como poderia este possível mutilado não apelar para todo o possível?

De que é que o museu está inevitavelmente privado? Até agora, dos conjuntos de vitrais e de frescos; do que não é transportável; do que não pode ser facilmente exposto, os conjuntos de tapeçarias, por exemplo, do que não pode adquirir. Mesmo envolvendo o emprego perseverante de meios imensos, o museu decorre de uma sucessão de felizes acasos. As vitórias de Napoleão não lhe permitiram transportar a Capela Sistina para o Louvre, assim como nenhum mecenas levará para o Metropolitan Museum o Portal Régio de Chartres, os frescos de Arezzo. Do século XVIII ao século XX, transportou-se tudo o que podia ser transportado; venderam-se, pois, mais quadros de Rembrant do que frescos de Giotto. E o museu, que nasceu quando só o quadro de cavalete representava a pintura viva, é um museu não da cor, mas dos quadros, não da escultura, mas das estátuas.

A viagem da arte completa-o, no século XIX, Mas, à época, quantos artistas conhecem o conjunto das grandes obras da Europa? Gautier visitou a Itália (sem ir a Roma), aos 39 anos; Hugo, na sua infância; Baudelaire, Verlaine, nunca. E a viagem a Itália era já uma tradição! Visitavam-se certas regiões da Espanha e da Alemanha, talvez da Holanda; muitas vezes, conhecia-se a Flandres. A atenta fila de apreciadores que se comprimia no Salão, público da melhor pintura da época, vivia do Louvre. Baudelaire não conheceu as principais obras de Greco, nem de Miguel Ângelo, nem de Masaccio, nem de Piero della Francesca, nem de Grünewald, nem de Ticiano, nem de Hals - nem de Goya, apesar da Galeria de Orleães... Les Phares começam no século XVI.

O que vira ele? O que haviam visto, até 1900, aqueles cujas reflexões sobre a arte permanecem, aos nossos olhos, reveladoras ou significativas, e que admitimos falarem das mesmas obras que nós, guiar-se pelas mesmas referências que nós? Dois ou três grandes museus, e as fotografias, gravuras ou cópias de uma pequena parte das obras-primas da Europa. A maior parte dos seus leitores viu ainda menos. Dos conhecimentos artísticos fazia, então, parte uma zona vaga, que decorria do facto de o confronto de um quadro do Louvre com um quadro de Florença, Roma ou Madrid ser o confronto de um quadro com uma recordação. A memória óptica não é infalível e, muitas vezes, várias semanas separavam os sucessivos estudos. Entre o século XVII e o século XIX, os quadros, traduzidos pela gravura, tornaram-se gravuras; haviam conservado (relativamente) o desenho, perdido a cor, que fora substituída, não por cópia, mas por interpretação, pela expressão a preto e branco; também haviam perdido as dimensões e adquirido margens. No século XIX, a fotografia a preto e branco limitou-se a ser uma gravura mais fiel. O apreciador de então conheceu as telas como nós conhecemos os mosaicos e os vitrais até à guerra de 40...

Hoje, um estudante dispõe da reprodução a cores da maior parte das obras magistrais, descobre muitas pinturas secundárias, as artes arcaicas, a escultura indiana, chinesa, japonesa e pré-colombiana das épocas mais antigas, uma parte da arte bizantina, os frescos românicos, as artes selvagens e populares. Em 1850, quantas estátuas estavam reproduzidas? Os nossos álbuns encontraram na escultura - que a monocromia reproduz mais fielmente do que reproduz um quadro - o seu domínio privilegiado. Conhecia-se o Louvre (e algumas das suas dependências), que cada um recordava como podia; hoje, dispomos de mais obras significativas, capazes de colmatar a memória, do que as que um grande museu é capaz de conter.

Na verdade, criou-se um Museu Imaginário, que vai aprofundar ao máximo o incompleto confronto imposto pelos verdadeiros museus: respondendo ao apelo por estes lançado, as artes plásticas inventaram a sua imprensa."

André Malraux, na Introdução ao seu Museu Imaginário.

para ler de seguida, A Escala dos Museus de Augusto M. Seabra. e para ver entretanto, a série museus, de Struth.

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