light gazing, ışığa bakmak

Thursday, May 3, 2012

o diabo

enquanto lia A Ilustre Casa de Ramires tentava lembrar que tinha dito que pessoas surgiam das palavras, como do nada, e logo voltavam a desaparecer mais logo na linha. assim faz Eça, convocando uma multidão viva nesta obra maior da língua e da história. (e era Nabokov sobre Gogol).

 ao ler Gogol, tenho sempre a impressão de uma coisa extraordinária, comovedora, para além do habitual. o que pode ser criado do ar com palavras.

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 Pela frente ainda podia enganar, mas 
pelas costas era o Diabo escrito e escarrado.
(Dum conto popular)


– Ouviste, Vlass? – dizia, erguendo-se na escuridão, um dos muitos visitantes da feira que pernoitava ao clarão das estrelas, – alguém falou no diabo, aqui ao pé de nós?
– E daí, que me importa isso a mim? – rosnou, espreguiçando-se, um cigano que estava deitado ao seu lado: – como se pode impedir alguém de falar da parentela?!
– Mas gritou como se o estivessem a estrangular!
– Quando um homem acorda bruscamente é capaz de imaginar todos os disparates!
– Seja o que quiseres, mas vamos ver o que se passa. Petisca lume!
O outro cigano pôs-se de pé, resmungando, iluminou-se duas vezes com as faíscas da pederneira que deram o clarão rápido de pequenos relâmpagos, puxou fogo à isca assoprando-a e acendeu o kaganetz – a lâmpada usada na Pequena-Rússia, que consiste num simples caco de barro cheio de sebo de carneiro, – e pôs-se em marcha alumiando o caminho.
– Alto! está aqui qualquer coisa caída. Ilumina por aqui!
Neste momento, já outros curiosos se lhes tinham juntado.
– O que vem a ser isto, Vlass?
– Palavra, que me parecem duas pessoas uma por cima da outra; mas não distingo qual delas é o Diabo!
–  Qual é a que está por cima?
– Uma mulher!
– Então, não há dúvida, é essa o Diabo!
Uma gargalhada geral ressoou por toda a rua.
– Uma mulher que cavalgou um homem com certeza que sabe bem como há-de dirigir a sua montada! – dizia um dos recém-chegados.
– Olhai, rapazes! – disse outro pegando num bocado dum pote de que apenas uma metade se conservava ainda na cabeça de Tcherevik, – vede de que fazenda é o boné deste desgraçado!
Os risos e o barulho sempre crescentes fizeram despertar as duas criaturas inertes, que não eram senão Solopi e a sua mulher. Ainda sob a influência do terror recente, contemplavam abismados os rostos trigueiros dos ciganos. Iluminados pela luz escassa e oscilante das lâmpadas, estes, pareciam uma selvagem reunião de gnomos, que, envolvidos numa neve opaca e subterrânea, viessem saindo das trevas de uma profunda noite.

Gogol no conto "A Feira de Sorotchinetz", nos Contos.
Foi em Sorotchinetz que nasceu Gogol.
também chamado Evenings in Little Russia, ou Evenings in a Village near Vikanka.
to read online here.


Sorochintsy.
Sorochintsy Fair, também uma ópera cómica de Mussorgsky baseada no conto de Gogol.
a feira no youtube.

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