light gazing, ışığa bakmak

Thursday, May 10, 2012

O folar

(que retirei daqui)

Relíquias - O Folar
Berta Gold *

Uma receita é coisa quase insignificante. Por si só não tem valor algum mas quando evoca uma memória de infância pode tornar-se numa relíquia de família se for passada de geração em geração, como uma das minhas. Em Lisboa, a minha avó costumava fazer um folar de Páscoa chamado “massa sovada”. Eu julgava que ele era o bolo mais delicioso jamais feito. Mas o que tornou essa receita numa memória feliz foi o ritual da preparação.

Na quinta-feira Santa, à tarde, a minha avó misturava a massa, dava-lhe uma sova prolongada e depois deixava que ela crescesse durante a noite em alguidares untados de óleo que cobria com toalhas de linho. Em cima colocava cobertores garridos para que a massa, bem aconchegada, continuasse morna.
No meio da noite, como qualquer mãe solícita, ela levan¬tava-se para ver se a massa crescera. De manhã, antes que alguém se levantasse, vestia-se rapidamente, fechava-se na cozinha para moldar os folares e cozê-los no forno. Por mais silenciosamente que ela trabalhasse eu, dormi¬tando e quente na cama, sabia que algo de mágico se estava a passar. E quando nos levantávamos o facto era confirmado por um doce aroma vindo da cozinha.

Os seis folares que a avó fazia – tinha que chegar para todos – eram lindos, redondos, com ovos cozidos a es¬preitar por entre as tranças do bolo. E a antecipação quando primeiro saboreávamos com suspiros felizes aquela primeira fatia de folar era para mim prova de que tudo no mundo estava bem. Aquele folar fazia tão parte do domingo de Páscoa como o quilo de amêndoas que os afilhados recebiam dos padrinhos, e a roupa nova que vestíamos quando depois íamos à missa.

Mas um dia a minha avó faleceu. De repente não havia folar de Páscoa. O ritual era hábito tão arreigado que nunca tínhamos pensado em pedir a receita à avó. Havia muitas receitas de folar, alguns feitos por outros membros de família, mas nenhum se comparava ao nosso.

A minha mãe buscou a receita entre as que a avó deixara – em letra azul num caderno pespontado à mão – mas a que se referia ao folar continha só 4 linhas sobre o fermento a usar. Ela bem tentou lembrar-se dos ingredientes e duplicar a receita. Mas nós éramos críticos severos. Agarrávamos avidamente a primeira fatia mas depois olhávamos uns para os outros e concordávamos tristemente. “É bom, muito bom… É quase como o da avó”.

Anos mais tarde quando me casei e criei o meu próprio lar, li receitas de Páscoa sem fim, até mesmo receitas de outros países. Finalmente, tentei reunir os ingredientes neces¬sários numa mistura provável. Preparei a massa, dei-lhe a sova necessária e velei-a à noite com carinho, como a minha avó fizera. Quando finalmente os folares saíram do forno, na ansiedade de provar a massa, eu nem esperei que os bolos arrefecessem e cortei uma fatia. Queimei a língua e fiquei com a boca cheia de sabor a fermento. Mas, a pouco e pouco o pão doce arrefecia e comecei a notar o sabor. Pare¬cia igual àquele que a minha avó fizera há tantos anos atrás. Agora, sei que consegui a receita original e que a minha filha também goza e antecipa o ritual como eu fizera. É ela agora quem faz o folar de Páscoa para a família dela e estou certa que a filha, a minha neta, também o fará.

Será que você tem também, lá no sótão uma caixa com relíquias de família, como a minha? Porque não vai buscá-las? Traga-as para baixo, tire-lhes com carinho e poeira e passe-as aos filhos. A receita não precisa ser maravilhosa, só amada porque a memória tem o dom de tornar o mais modesto pão ao bolo mais doce.
* Ex-Jornalista do Time Magazine / Nova Iorque Este artigo foi publicado na edição de 16 de Março de 2012, página 7 do Jornal de Sintra

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