light gazing, ışığa bakmak

Monday, June 11, 2012

beijo


A recepcionista do jornal é uma mulher gorda, arrastada na voz e nos gestos. Parece ter nascido assim, sentada, o traseiro semelhando um astro em competição com a Terra.
- Venho saber do resultado do concurso.
Agito o recorte do anúncio frente à vidraça. A voz flautada da recepcionista foi feita para se esgueirar pelas frestas do vidro quebrado:
- O senhor é o próprio caçador?
- Eu sou o último caçador. E esta é a minha última caçada.
A funcionária olha o tecto como um astrónomo contempla o céu ao meio-dia. Abre à minha frente um envelope enquanto volto a falar, eufórico, certamente para adiar o momento da revelação:
- Não sei por que publicaram o anúncio. Já não há mais caçadores. Há quem ande por aí aos tiros. Esses não são caçadores. São matadores, todos eles. E eu sou o único caçador que resta.
- Arcanjo Baleiro? É esse o seu nome?
Sou o único que resta, repito sem responder à pergunta. E prossigo o meu delirante discurso. Não tarda, afirmo, que não sobrem animais. Porque esses falsos caçadores não poupam nem crias nem fêmeas grávidas, não respeitam os períodos de defeso, invadem os parques e as reservas. Gente poderosa fornece-lhes as armas e tudo, para esses matadores, se resume à sagrada trilogia: arma, dinheiro, poder.
- É tudo carne, é tudo nhama - suspiro, em desânimo.
Só então regresso aos olhos mortiços da mulher gorda que aguarda o final do meu arrazoado.
- O seu nome é Arcanjo Baleiro? Pois o senhor vai poder caçar à vontade, foi você que ganhou o concurso.
- Posso entrar no seu gabinete? Quero dar-lhe um beijo.
Com inesperada ligeireza, a mulher ergue-se sobre o balcão e espera de olhos fechados, como se o meu beijo fosse o único prémio de toda a sua vida.

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Mia Couto em grande forma n'A Confissão da Leoa.


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