"O que é que nós [artistas] fazemos? Obras de arte, seja qual for o seu material ou o seu suporte. Mas face à sacralização de que são objecto muitas obras do passado, em contraste com a problemática recepção de obras de arte do presente, do passado recente ou, em geral, das artes performativas, mau grado outro tipo de explicações de ordem geocultural para o facto (muitas das quais tem sido aqui abordadas) é talvez importante sublinhar que, antes de mais nada, nós fazemos "coisas" que dão pelo nome de obras de arte. Heidegger escreve sobre isso de forma admirável: "O quadro está pendurado na parede do mesmo modo que uma caçadeira ou um chapéu. Uma pintura, por exemplo, a de van Gogh que apresenta um par de sapatos de camponês, anda de exposição em exposição. As obras são expedidas como o carvão da bacia do Ruhr ou como os troncos de árvore da Floresta Negra. Durante a campanha, os hinos de Holderlin estavam empacotados na mochila do mesmo modo que um utensílio de limpeza. Os quartetos de Beethoven jazem no armazém da editora tal como batatas numa cave".
Este é o seu lado de "coisa" que Heidegger nos mostra. Mas também escreve: "ultrapassando o seu lado de coisa [a obra de arte] é ainda algo de outro".
(in A Origem da Obra de Arte)
Pode-se levantar a hipótese - de trabalho, porque a questão é complexa - de que, no caso das obras de arte dos países periféricos, especialmente aquelas que não são "em pedra", ou "em talha", mas que são "na cor" ou "no som", ou ainda mais, em apresentação sempre efémera num palco, que o seu lado de "coisa" - "que jazem no armazém tal como batatas numa cave" - se sobrepõe àquilo que apresentam de facto como "algo de outro".
Este lado - que Heidegger considera como alegoria e/ou símbolo - enfrenta, por via das determinações do social específico de cada local de enunciação, obstáculos, que não apagando ou anulando o seu lado inerente, intrínseco, de "algo de outro", tendem a colocá-lo realmente mais próximo do seu lado "coisa": "jazem no armazém da editora [quando há editora] tal como sacos de batatas numa cave".
Na vida musical actual, as partituras dos compositores portugueses e de outros países periféricos de todos os períodos históricos - só poucas vezes são trazidas do armazém onde jazem e se podem elevar "no som" ao seu lado de "algo de outro". Quando isso acontece, de cada vez que isso acontece, podemos celebrar, uma "essência", se admitirmos que existe, mas sobretudo uma "existência"."
diz António Pinho Vargas no fb,
no seu caminho contra o apagamento de si próprio, mas como sempre tão facetado como um diamante, ou seja, leio sempre tantos textos numa afirmação de António Pinho Vargas. O apagamento quer da essência, quer da existência (não as separo) de obras de arte de países periféricos é o mesmo apagamento que tem retirado as mulheres da história ao longo dos milénios. Reconheço-o bem. No estado actual de tirania efectiva dos mercados, a hegemonia cultural de um ponto de vista (nem sequer pior hoje do que antes) assegura o esquecimento de todos os outros. Sempre achei que 'música do mundo' era isso mesmo, uma espécie de 'outros'.
as mulheres foram sempre os países periféricos.
light gazing, ışığa bakmak
Monday, June 25, 2012
países periféricos
Publicado por
Ana V.
às
8:17 AM
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