light gazing, ışığa bakmak

Thursday, January 17, 2013

fortalezas seljúcidas

"Por vezes, porém, sentia que todas as maquinações históricas conservadoras com a finalidade de tornar estas terras refractárias a qualquer mudança tinham falhado, e que os mercados, as mercearias de bairro, as ruas embandeiradas de roupa a secar, que, catorze anos antes, nos tinham parecido, a mim e a Janan, tão indestrutíveis e imutáveis como as fortalezas seljúcidas, eram varridas e arrastadas pelos ventos que sopravam do Ocidente. No centro das cidades de província, aqueles aquários que dantes ocupavam  o lugar de honra dos restaurantes e os enchiam de silêncio e serenidade tinham desaparecido para sempre, assim como os peixes que lá nadavam, como se tivessem obedecido a uma ordem secreta. Quem tinha então decidido, no decurso dos últimos catorze anos, que as letras berrantes nos inúmeros painéis de vidro plástico haveriam de florir como as bardanas não só nas ruas principais, mas também nas ruelas poeirentas mais afastadas? Quem mandara cortar as árvores das praças? Quem ordenara que as balaustradas de ferro das varandas fossem todas do mesmo modelo, nas fachadas de betão que cercavam como muralhas a estátua de Atatürk? Quem aconselhara as crianças a apedrejarem os autocarros de longo curso? Quem tivera a ideia de perfumar os quartos dos hotéis com um anti-séptico mal cheiroso? Quem distribuíra por todo o país os calendários em que manequins anglo-saxónicas se deixam fotografar com pneus entre as longas pernas? Quem decidira que os cidadãos deste país deviam olhar-se como cães de faiança para se sentirem em segurança em lugares novos que têm nomes como elevador, caixa de banco, sala de espera?

Eu tinha envelhecido antes da idade, cansava-me depressa, caminhava o menos possível. Fazia de conta que não reparava que o meu corpo se deslocava muito lentamente, arrastado que era pelas incríveis multidões onde desaparecia a pouco e pouco, e esquecia de imediato as caras dos transeuntes que me empurravam ou que eu próprio acotovelava, tal como esquecia os nomes dos advogados, dos peritos financeiros, dos dentistas que figuravam nos inúmeros painéis publicitários que corriam em torrentes por cima da minha cabeça. Não conseguia perceber como todas essas cidadezinhas inocentes, todas essas ruelas que pareciam saídas de uma miniatura e onde outrora Janan e eu passeávamos, com um sentimento lúdico e mágico, como no jardim secreto onde uma boa mulher nos tivesse deixado entrar, se tinham transformado em aterradores cenários de teatro, cópias exactas umas das outras, efervescentes de sinais de perigo e de pontos de exclamação."
Pamuk em A Vida Nova.

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curiosidades que se escondem na escrita de Pamuk: os seljúcidas foram um enorme império que precedeu o império otomano, no início do milénio anterior, ou mais precisamente entre 1037 e 1194. este império desmoronou-se por várias razões (todos os impérios se desmoronam) mas também por causa das cruzadas. em baixo, a fortaleza de Alanya.


e com dificuldade em resistir à tentação.



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Pamuk está na Turquia um pouco como Saramago em Portugal: que não sabe escrever, que não se pode ler, que renega a pátria, um estrangeirado ou emigrante. os mestres da língua fora também eles estrangeirados e emigrantes: Camões, Pessoa, Eça, António Vieira.


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