light gazing, ışığa bakmak

Tuesday, March 12, 2013

couves

(com ligação directa às couves da C.)

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Elogio da Couve Portuguesa
Saramago

A notícia correu o país inteiro, provocando o frémito das grandes ocasiões patrióticas: uma couve portuguesa plantada na Austrália atingiu 2,40 metros de altura (por extenso e para não haver dúvidas: dois metros e quarenta centímetros) — e continua a crescer. Sob céus e climas estranhos, rodeada de cangurus, ameaçada certamente pelas tribos primitivas do interior, ao alcance do terrível boomerang, a couve portuguesa dá uma lição de constância e de fidelidade às origens, ao mesmo tempo que mostra ao mundo as nossas raras qualidades de adaptação, o nosso universalismo, a nossa vocação de grandes viajantes. E continua a crescer.

Nos tempos de antigamente, as naus levavam nos porões rangentes e cheirosos de pinho aqueles marcos de pedra que tinham gravadas as armas de Portugal e que representavam sinal de posse e senhorio. Era obra pesada, dura de trabalhar, difícil de mover e implantar. Hoje, já com todos os caminhos marítimos abertos, basta ao simples emigrante deitar mão ao saquinho de pano-cru, retirar umas tantas sementes, lançá-las à terra, e em menos de um ano apresenta ao mundo maravilhado um couval que mais parece uma floresta. Faz a sua diferença.

O leitor que tenha retido destas crónicas um certo tom doce-amargo, que é ironia e negação dela, pensará que eu estou brincando com coisas sérias ou que como tal são consideradas. Pois não estou, não senhor. O emigrante de quem falo hoje tem setenta e dois anos, emigrou aos cinquenta e quatro, e andou com as sementes no bolso durante dezassete anos - à espera de um quintal para as semear. Se isto não é dramático, não sei onde será hoje possível encontrar o drama. Durante dezassete anos, as sementes esperaram pacientemente a sua hora, o quintal prometido, a terra fertilíssima. Entretanto, o nosso compatriota, cada vez mais cansado, cada vez mais velho, mas sempre esperançoso, percorria a Austrália de ponta a ponta, cruzava os desertos, rondava os portos de mar, penetrava nas grandes cidades, inquiria o preço dos terrenos, numa busca ansiosa. Aos marinheiros do Gama deu Camões a Ilha dos Amores e o Canto Nono; este viajante português do século XX declara-se feliz, realizado, pleno quando, de metro em punho, com os pés na regueira fresca, bate o record da altura em couve e comunica o feito às agências de informação. Convenhamos, amigos, que só um coração empedernido se não deixaria mover a uma lágrima de enternecimento.

Que esse decerto respeitável velho me desculpe se qualquer volta nas minhas palavras ressumbrar ironia. Não era minha intenção. Provavelmente é ela a única porta de saída que me resta, a alternativa da veemência com que eu teria de interpelar não sei quem, não sei onde, por esta obstinação de vistas curtas, por esta falta de capacidade de criar pele nova, que nos leva a andar com sementes de couve aqui e por todo o mundo, à procura de um quintal igualzinho ao da infância, para nele catarmos as mesmas lagartas e partirmos melancolicamente os mesmos talos.

O que são as coisas: propunha-me eu fazer o elogio da couve portuguesa, e vai-se a ver saiu-me isto: uma dor no coração, uma sensação de ser folha migada, uma dura e pesada tristeza.

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crónica de Saramago em A Bagagem do Viajante, publicada originalmente nos jornais A Capital e Jornal do Fundão entre 69 e 72, não sei em qual deles precisamente foi publicado esta crónica. mais aqui. um texto de escritor em início de carreira mas onde reconheço o estilo posterior aqui ainda recém-nascido ( o gosto pela palavra arcaica, o floreado intenso das frases, a ligação permanente à história do país, a ironia violenta entre pobres-ricos, entre realidade-apresentação pública mas, acima de tudo, o calçar os sapatos do pobre e ver a vida pelos seus olhos).  também um Saramago a escrever com censura, antes da revolução de Abril. -um tema muito de agora mesmo, que zomba da mistura oficial: o passado navegador glorioso e a  emigração. ainda: a mesma ideia da infância como paraíso perdido e a minha frase favorita, a sensação de ser folha migada.

(o livro todo aqui. ou aqui.)


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