ler o Abelaira e ver o último filme de Fernando Lopes deixam um pouco da mesma sensação de ter sido aquela a altura em que tudo mudou, um súbito encontrão no percurso que ofereceu a liberdade de hoje. ser livre para estar só, para ser ou para ir onde se quer. (se não gostas de estar só, não gostas de ti, quem disse. eu sei bem quem disse).
vi o Abelaira em geral como um homem sensível, talvez delicado. agora acrescento indeciso. com Bolor entra-se no interior de muitos apartamentos lisboetas de há vinte anos, os tais que cresciam em Benfica, talvez nas avenidas novas, cujos habitantes estão hoje sós (sabiam lá eles), muitos deles em lares da santa casa a serem limpos e lavados por perfeitos desconhecidos que, se tiverem sorte, se lembram que foram gente de substância, com carreiras, casamentos que pareciam bem e as dúvidas que tiveram e o convívio com a censura, os cafés de lisboa onde os amigos bebiam as cervejas e conspiravam mas pouco seriamente contra o regime. eram mais piadas do que acção (acção só os pobres ou os muito ricos, n'est ce pas).
também me faz sentir contente de não estar em nenhuma daquelas constrições, de não ter de imaginar o que o outro esconde e fazer novelos e ocupar o espírito com isso, e ter pesadelos e pensar como seria se não fosse assim e pôr tudo em causa. tinham-se casado para sempre mas naquele tempo já os cônjuges estavam destinados ao fracasso, e não o sabiam.
nos livros com várias mãos, como este que me chegou aos olhos depois de outros o terem lido, gosto de descobrir os seus objectos. neste Abelaira encontrei um postal de Albufeira no seu início, anos oitenta, e uma relíquia de Jerusalém sobre a qual secou uma planta e logo imagino que foi uma mulher, quem sabe sofrendo o mesmo que a Maria do Rosário das páginas a perguntar ao marido, advogado, se ainda pensa nela (havia sempre uma ela). quando re-leio, diz Pamuk, há uma multidão: o leitor que foi, o autor, as personagens e o leitor que é nesse momento (e gosta dessa multidão). assim eu gosto da leitora que sou, do autor, das personagens, da leitora que num livro de Abelaira colocou um souvenir de Jerusalém, uma flor de oliveira de Gethsemani e um postal que se esqueceu de enviar. a quem o enviaria e o que diria. têm sido umas férias agradabilíssimas, tenho aproveitado para ler--
light gazing, ışığa bakmak
Saturday, May 25, 2013
Bolor
Publicado por
Ana V.
às
3:31 PM
TAGS Augusto Abelaira, Biblioteca de Babel, Orhan Pamuk, Stuff
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment