light gazing, ışığa bakmak

Sunday, April 6, 2014

lembro-me

de quando as empresas, as pequenas, tinham departamentos de peças. lembro-me do senhor r., sempre cuidadoso, educado e metódico, talvez as características que deve ter um homem (eram sempre homens) que tratava de arrumar, catalogar e controlar milhares de pequenas peças que tinham referências enormes e que só existiam naquele semi-armazém ponto de venda um pouco escuro onde outros homens vinham para tentar resolver problemas das suas máquinas gastas.

o senhor r. há muito que se reformou. o comércio de peças é agora uma coisa sui generis. ou não existe porque as marcas vendem objectos inteiriços e tão sofisticados que não podem ser partidos ou alterados por ninguém (para além do just in time que matou os armazéns mas que faz circular os transportes e o dinheiro em velocidades superiores); ou são peças controladíssimas informaticamente e muito normalizadas, palavra estranha para indicar que cada peça vai servir para um sem-número de fins, reduzindo as existências (ah, o ikea, modelo da normalização eficiente); ou ainda são peças de candonga, chinesas ou vietnamitas e que são de tal qualidade que dá para medir a sua duração com um cronómetro.

quando comecei na profissão que tenho, essa profissão tinha sido criada havia um ano. em dez anos tudo mudou. hoje, se ficasse um ano longe da profissão, era totalmente atropelada por ela e estaria irremediavelmente ultrapassada; seria necessário aprender tudo do início. é a velocidade das coisas, especialmente as que têm alguma ligação, por vezes mesmo remota, à tecnologia. até os ciclos económicos, julgo, têm acompanhado o aquecimento global e são cada vez mais curtos e catastróficos. entrar no mercado tecnológico é aceitar esta velocidade (há pouco tempo um ministro ou similar disse umas idiotices em relação a isto e aos estudos, as profissões rentáveis e enormidades do género). talvez seja possível sobreviver em profissões manuais tradicionais mas mesmo essas precisam de ser vendidas por alguém. gosto dos vendedores de mercado, os antigos mercadores que se fiam na sua voz, nas mãos, no corpo e nas caixas de produtos que colocam entre si e o cliente. uma exposição. as antigas manhas destes vendedores (ó menina) são canções de embalar que contrastam com os novos meios de venda, sub-reptícios, mentirosos, imorais.

muitos têm saudades do senhor r., o seu fato de trabalho azul, o seu cabelo prateado com risco ao lado, a voz assertiva e calma, homem de família que tinha frequentado a escola industrial e começado a trabalhar em adolescente, quando não em criança, filho de operários. honrado e modesto, um passado.

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