light gazing, ışığa bakmak

Sunday, May 25, 2014

"ameaçava gravemente a estabilidade não só do regime, mas também, muito mais grave, do sistema"

(...) terminar. Quando pousou o auscultador olhou para os colegas da mesa, mas na realidade não os via, era como se tivesse diante de si uma paisagem toda feita de salas vazias, de imaculados cadernos de recenseamento, com presidentes e secretários à espera, delegados de partidos a olharem desconfiados uns para os outros, deitando contas a quem poderá ganhar e a quem poderá perder com a situação, e lá longe algum vogal molhado e prestimoso regressando da entrada e informando que não vem ninguém. Que foi que responderam do ministério, perguntou o delegado do p.d.m., Não sabem que pensar, é natural que o mau tempo esteja a reter muita gente em casa, mas que em toda a cidade suceda praticamente o mesmo que aqui, para isso não encontram explicação, Por que diz praticamente, perguntou o delegado do p.d.d., Em algumas assembleias de voto, é certo que poucas, apareceram eleitores, mas a afluência é reduzidíssima, como nunca se viu, (...)

(...) Porquê, Ah, isso não sei. Os comentadores que nas várias televisões acompanhavam o processo eleitoral, dando palpites à falta de dados seguros de apreciação, inferindo do voo e do canto das aves a vontade dos deuses, lamentando que já não esteja autorizado o sacrifício de animais para nas suas vísceras ainda palpitantes decifrar os segredos do cronos e do fado, despertaram subitamente do torpor em que as perspectivas mais do que sombrias do escrutínio os haviam feito soçobrar e, certamente porque lhes parecia indigno da sua educativa missão desperdiçar tempo a discutir coincidências, lançaram-se como lobos ao extraordinário exemplo de civismo que a população da capital estava a dar ao país naquele momento, acudindo em massa às urnas quando o fantasma de uma abstenção sem paralelo na história da nossa democracia ameaçava gravemente a estabilidade não só do regime, mas também, muito mais grave, do sistema. (...)
José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez.

«A ameaça hoje não é a passividade, mas a pseudo-actividade, a premência de "sermos activos", de "participarmos", de mascararmos o nada do que se move. As pessoas intervêm a todo o momento, estão sempre a "fazer alguma coisa"; os universitários participam em debates sem sentido, e assim por diante. O que é verdadeiramente difícil é darmos um passo atrás, abstermo-nos. Os que estão no poder preferem muitas vezes até mesmo uma participação crítica, um diálogo, ao silêncio: implicar-nos no "diálogo", de modo a assegurarem-se de que a nossa ameaçadora passividade foi quebrada. (...) Por vezes, não fazer nada é a coisa mais violenta que temos a fazer.»
Slavoj Žižek, Violência, Relógio D’Água, 2009, via irmão karamazov

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