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Tuesday, May 6, 2014

"Arrogar-se o Estado legislar sobre intangíveis como a língua, que na realidade o excedem, seria uma extensão abusiva das suas funções. "



Senhor Presidente da
Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura
Assembleia da República
Dr. José Ribeiro e Castro

Venho submeter à Comisssão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, a que preside, dois argumentos a favor da Petição nº 259/XII/2ª “Pela desvinculação de Portugal ao «Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa» de 1990”.

A posição que adopto a favor da desvinculação do Acordo é política e liminar. Reconheço mérito nos argumentos, apresentados por outros peticionários, que sublinham a inépcia técnica, linguística, do Acordo;
a não-congruência de posição de todos os países signatários, que redunda, na prática, num não-acordo;
a ausência de instrumentos de conversão e execução coerentes e fiáveis; a insubstancialidade de qualquer análise de custos e benefícios que o Acordo supostamente traria, sendo decerto interessante, neste particular, determinar quais os custos já incorridos com a sua fruste implementação, e se se materializaram os ganhos que, na proposta inicial de Acordo, foram invocados pelos seus defensores como certos;
a obstinação do Estado em persistir numa decisão política que, se submetida a referendo, seria - parece possível prevê-lo, dada a intensidade das manifestações de repulsa, que largamente excedem as de aceitação – recusada; e a perplexidade sobre a razão por que não submete o Estado a questão ao eleitorado; a falácia na justificação apresentada pelos defensores do Acordo que consiste em deduzir a necessidade de um Acordo da necessidade política de reforçar laços entre os países de expressão portuguesa; esta posição é falaciosa pois pode reconhecer-se a necessidade dessa política, mas não considerar-se o Acordo o modo adequado de a pôr em prática, considerando, em vez disso, os diversos dialectos, grafias e léxico existentes o contexto adequado ao reforço de tais laços.

Não são, todavia, estes os argumentos que, neste momento, gostaria de submeter à Comissão a que preside.

Permita-me que, sem incorrer no paroquial entusiasmo “anglo-saxónico” que afecta hoje o debate público no nosso país, todavia invoque essa tradição, a título meramente ilustrativo. Não há, como sabe, qualquer acordo ortográfico entre países de língua inglesa, nem poderá havê-lo. A língua inglesa nem mesmo é língua oficial dos Estados Unidos, sendo as tentativas de legislá-la como tal sistematicamente recusadas pelo Congresso. A inexistência de uma língua oficial implica que, em qualquer comunidade em que haja uma significativa comunidade de falantes de um idioma que não o inglês, os documentos oficiais devam escrever-se nesse idioma, bem como em inglês, enquanto idioma mais falado no país. O critério é aqui pragmático e político, o do necessário reconhecimento democrático de uma realidade local. Arrogar-se o Estado legislar sobre intangíveis como a língua, que na realidade o excedem, seria uma extensão abusiva das suas funções. Numa altura em que, em Portugal, se procura definir com parcimónia quais as funções do Estado, a sua extensão a um domínio como a língua é uma forma de cesarismo indesejável. É este o meu primeiro argumento contra o Acordo.

(E é este o argumento que me levou a declarar agnóstica neste domínio a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, instituição de que actualmente sou Director e Presidente do Conselho Científico, qualidade que, neste texto que submeto à Comissão, não desejo invocar. Se, como julgo, não deve haver uma política de língua do Estado, não parece curial que uma instituição pública a tenha.)

Finalmente, alterar o modo como escrevo para o modo como o Acordo impõe que escreva é uma forma de violência sobre o que de mais visceral pode ser a identidade pessoal. É nesta visceral violação subjectiva, que é a de todos os que, escrevendo de um modo, se vêem coagidos a mudá-lo, que reside o meu segundo, e último, argumento contra o Acordo. Se se entender que esta posição não é “prática”, considere-se a desoladora pobreza conceptual deste termo no debate público, que ignora versões nocionalmente mais ricas e densas do que é “prático”. Eminentemente “práticas” são noções como a de “direitos individuais”, a de “personalidade”, de “solidariedade”, ou de um valor demasiado rarefeito na história moderna e contemporânea de Portugal, à sombra do qual termino, a “liberdade”.

Subscrevo-me, saudando a casa da Democracia, que é a Assembleia da República.

Cordialmente,

António M. Feijó

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