light gazing, ışığa bakmak

Wednesday, June 22, 2016

palavras vivas

"É justa a alegria dos lexicólogos e dos editores quando, ao som dos tambores e das trombetas da publicidade, aparecem a anunciar-nos a entrada de uns quantos milhares de palavras novas nos seus dicionários. Com o andar do tempo, a língua foi perdendo e ganhando, tornou-se, em cada dia que passou, simultaneamente mais rica e mais pobre: as palavras velhas, cansadas, fora de uso, resistiram mal à agitação frenética das palavras recém-chegadas, e acabaram por cair numa espécie de limbo onde ficam à espera da morte definitiva ou, na melhor hipótese, do toque da varinha mágica de um erudito obsessivo ou de um curioso ocasional, que lhe darão ainda um lampejo breve de vida, um suplemento de precária existência, uma derradeira esperança. O dicionário, imagem ordenada do mundo, constrói-se e desenvolve-se sobre palavras que viveram uma vida plena, que depois envelheceram e definharam, primeiro geradas, depois geradoras, como o foram os homens e as mulheres que as fizeram e de que iriam ser, por sua vez, e ao mesmo tempo, senhores e servos."
Saramago nos Cadernos de Lanzarote V.
um mestre da língua, um virtuoso, aquele que chega longe e facilmente ao que levo anos a aflorar. que saudades. e no entanto ouço-lhe a voz e os pensamentos, eu e as outras cabeças com as suas sentenças. quando encontrei o Mia Couto sem aviso, fiquei embatucada, só me ocorria dizer obrigada e era só isso, obrigada, obrigada. obrigada, Saramago. tenho o Cerco cheio de páginas dobradas, milhentas anotações mentais. como todos os livros tinham um cão. pus-me a pensar: os cães existiram? seria um, vários? pelo menos um foi e encontrei-o nos Cadernos. o cão de Saramago chamava-se Camões.

e outra: "A meia hora de travessia do canal de Robaina, que separa as duas ilhas, mostrou-me novamente quanto se ganha em quebrar uma vez por outra a rotina das manhãs domésticas: aquela luz ainda com vestígios da claridade auroral, o balanço largo das ondas que era como a respiração do mar, o vento rijo e constante que soprava do norte, dos vulcões de Lanzarote - ora impressões que recolhi profundamente, segundo a segundo, como se eu viesse, piloto e relojoeiro, a governar o tempo e o barco..."

na primeira pessoa, a deixar ver pelos seus olhos, sentir pela sua pele. esse sentimento tão particular que me transportou imediatamente para a cidade meu sonho, no início da noite, o ruído do motor e os estalos da água, as cores na ponte, o barco quase deserto no percurso karaköy üsküdar.~

pegar num arrepio e fazê-lo sentir a outro com meia dúzia de palavras.


imagem daqui.

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