light gazing, ışığa bakmak

Saturday, April 8, 2017

e agora

(não 'e agora, Ana?') mas e agora que todos foram dormir, que a cabeceira da cama está terminada, como está o verniz do armário na casa de banho quase seco e pronto para outra demão (que bom seria darmos demãos na vida e cada uma tornar a coisa melhor), um momento para o silêncio. desenterrei as cartas esta noite, ao todo duas caixas e vários sacos e está tudo com cheiro a mofo. tenho de arejar e pôr ao sol as cartas de amor, as outras também não escapam, ou vão-me cheirar a mofo os amores antigos. mas estão frescos como se fosse ontem, partes deles pourtant, que dos sofrimentos não quero guardar nada. para o dialogante e misterioso L.G. deixo esta memória: fomos para Sevilha no calor do verão porque ele era um apaixonado de Albéniz e, tal como eu que vou às cidades esperando encontrar as linhas dos livros que amo, também ele lá foi procurar as frases das partituras. eu encontro e também ele encontrou. andou pela Triana como sonâmbulo (ou talvez fosse eu quem estivesse cega pela luz, a do sol e a dele), com as notas nos olhos. esta Sevilha ficou sempre a nossa, uma Sevilha diferente de todas as que visitei tantas vezes mais tarde e algumas mais cedo. (numa Sevilha mais tardia tirei uma foto que perpetua um momento inesquecível de alguém que só vive na memória) são tantas as cidades e as mesmas!
amanhã aproveito e ponho as cartas todas ao sol esperando que não voem. se tivesse uma gaiola punha-as dentro e transformava-as por algumas horas em pássaros infelizes. quem sabe não as transformava em atracção para os pássaros vivos do bairro que gostam de visitar o meu quadrado (e de comer as minhas ginjas). porque nada é meu, senão as cartas. algumas do Sérgio, algumas da Teresa, queridos amigos que nunca mais verei senão em sonhos.
não podia ter sido de outro modo: fomos durante o Corpus Christi que vimos da janela do segundo andar com enorme emoção.


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