light gazing, ışığa bakmak

Tuesday, October 12, 2004

Construção

Como construir uma casa em dezanove passos

1.
No Inverno inundava-se tudo de água. Mas quando se abriu uma brecha nas paredes de tabique, tiveram de retirar a mansarda. A renovação do telhado fez desaparecer a ondulação ocre das telhas e os bolores. As linhas da casa estenderam-se, austeras, e os esporos antigos foram substituídos pelo pó seco das telhas novas.

A água, no entanto, permanecia. A água, os mortos, os espíritos dos cães, as almas vagas, os ecos e as sombras passadas.

A primeira vez que viu a casa que seria a sua, sentiu a brecha da mansarda há muito ausente abrir-se no baixo ventre. "Neste aluvião construirei", pensou. "Será a minha morada de castor. Orgânica."


2.
Ela - tal como as outras mulheres - tinha o vício da construção. Apanhar logo uns galhos e empilhá-los em mikados inconsistentes. Mas hoje não: hoje não se vestia, ficava nua; não juntava, dispersava; esquecia sem lembrar. Porque as casas também se constroem de vazios e evasões. E assim foi a construção hipotética das janelas.


3.
- Quero entrar - disse ela.
- Um dia - disse ele.
- Vamos trocar.
- Vamos.
- Quero entrar - disse ele.
- Um dia - disse ela.


4.
Ao segundo dia construiu uma chaminé, erecta, a sul. É onde está a cozinha, concluiu. E ao dizer isto, libertou-se da chaminé a memória do pão que a mulher amassou.


Sentiu a massa lêveda, esponjosa e macia - como seios - nos seus dedos (bicos). Dá-me o pão nosso de cada noite. Dá-me. Mergulhou as mãos na farinha e esfregou as coxas. E o pão entrou no seu forno de lenha escura, incandescente. No final do acto, a crosta dura a estalar dentro da sua boca, saciada (pão de água).


5.

- O que é o riso - perguntou ela.
- Crueldade ou empatia - respondeu ele.
- Há quinze anos que eu procurava o riso - disse ela.
- Há quinze anos - repetiu ele.
E se dormíssemos ao relento esta noite?


6.
A mulher entrou no café anónimo, comprou um maço de cigarros, um isqueiro e pediu uma bica. Sentou-se à mesa, abriu o maço e tirou um cigarro, que acendeu com o isqueiro roxo.Aspirou o fumo l-o-n-g-a-m-e-n-t-e.

Na mesa à sua frente uma mulher chorava. Deu um gole no café.
Uma chávena, um poço. Waferland.


7.

É minha esta casa? Na soleira da porta a mulher sentou-se no chão, consigo.

O meu lápis, a prateleira, o meu cão, o lençol, o meu lixo, o riso, o meu copo de vinho, o sono, o meu abismo, a memória, o meu retrato, o amigo, o meu silêncio, o ridículo, o meu quarto, o hábito, o meu choro, a noite branca, o meu vazio, o medo, o meu pesadelo, o fundo, o fundo.

A mulher levantou-se do chão e levou a mão ao batente.


8.
Imagem líquida:
As ruas ladeadas de construções lacustres, a água a subir até aos joelhos, gélida.Se a fundação for sólida, sobrevives à corrente.

Ele: tens corpo de mãe.
Ela: Sim, corpo-objectivo.
Ele: Estás preparada, és resistente.
Ela: Sou frágil.


9.
Não era minha a vida que habitava.


10.
Hoje acordei a levantar paredes no ar. A manhã aquosa, lagoa, e os meus braços ocupados com estacas e fundações. Depois tirei uns quantos livros com bonecos e fiquei sentada a olhar para eles, no meio da água.


11.
Entrou no jardim como se tivesse saído por apenas dez minutos.
O musgo verde no degrau da entrada e o aroma doce dos cedros. As heras a correr o chão e a mecânica positiva da nora. As portadas de madeira, escamada, e as grades de ferro eternizadas por um desejo desfeito. Ao fundo, o volume húmido da serra a respirar devagar.
Quando entrou, apenas regressou a casa.


12.
Chegado enfim o dia de todas as revelações. Passo a passo entro em vida alheia; o corpo das mágoas em cada colcha, as sopas emudecidas nos pratos, as notícias caladas na boca do velho rádio. Vejo-os a eles, essas figuras translúcidas que deram as horas aos soalhos corridos e à cera. As velas, as jarras, desenhos escondidos. O senhorio está ainda sentado na sala, nos pés umas chinelas desmaiadas, nos dedos o terror de Ho Chi Min e nos olhos a perplexidade suspensa de um pássaro.


13.
De repente a azáfama nítida dos objectos. Colocar cadeiras, uma mesa, pratos e almofadas. Cortinas. Peças. Aqui fica a Terra e a Lua, ao canto pomos Mercúrio. A nova ordem das esferas, a sua própria teogonia.


14.
Deste casulo de observação macio, apontamos a trajectória das coisas.
Enquanto o tecto se sustentar, permanecemos com o entendimento de um só.

- Falo muito, disse.
- E eu falo pouco.
- Sim, falas pouco.
- E tu falas muito.
- Amo-te.
- Amo-te.


15.
Dormira ao abrigo de paredes de areia. À luz, esvaíam-se os grãos sob os dedos. Tentando estancar o jorro, a mulher embalava a dúvida, baixinho. Quanta areia já caiu? Será este o desaguar indigno desta monção?

Fecho os olhos. "Era uma vez..."
Como se nada fosse. Como se nada fosse.


16.
Vieram as névoas e os glaciares, as nuvens metálicas rasaram o chão. A casa abriu-se ao Inverno, o corredor feito alameda, a praça que roda em torno da mesa de centro, quebradiço o ar, cristalino. Um vento serrano levanta as folhas, os papéis, as fibras. E apenas sob o algodão doce e morno da cama soletramos a nossa morada.


17.
Ouvia o restolhar das estações. Folhas arrastadas, como papéis, rua abaixo. Mortas para depois ressurgir, verdes e musculadas de água. Vai cerrando os olhos, sem pressa, os sentidos só apanhados pelo tempo que passa.

Um mero refúgio, uma passagem. Afinal. Os muros saltavam a distância e galgavam milhas, inquietos e possessivos. Tomando para si outras vistas, tornando inviável o fim do caminho.



18.
Estanques sobre o rio, nas nossas costas árvores mondriânicas riscam a água suspensa. Nevoeiros. Um longo dragão branco, cuspindo espuma, ondula leito acima. O hotel fantasma que nos encara e a praia obscura a refletir aquela outra, dourada sob o dia claro, guardiã do momento perfeito, imagem-memória. Nestas colinas repousa a nossa Patagónia, o condor, o gelo das manhãs, o calor da terra do fogo.

19.
A Primavera anunciou-se no sangue dos insectos mortos no bico do meu carro.
No balanço da contagem de corpos, abrimos os olhos e fazemos a chamada.
Confere. Presente.





No comments:

 
Share