light gazing, ışığa bakmak

Tuesday, December 4, 2007

Escuta, Zé Ninguém

"Está doente, Julgo que não, senhor, Se não está doente, como explica então o mau trabalho que tem andado a fazer nos últimos dias, Não sei, senhor, talvez seja porque tenho dormido mal, Nesse caso, está mesmo doente, Apenas durmo mal, Se dorme mal, é porque está doente, uma pessoa saudável dorme sempre bem, a não ser que tenha algum peso na consciência, uma falta censurável, daquelas que a consciência não perdoa, a consciência é muito importante, Sim senhor, Se os seus erros de serviço são causados pela insónia e se a insónia está a ser causada por acusações da consciência, então há que descobrir a falta cometida, Não cometi nenhuma falta, senhor, Impossível, a única pessoa, aqui, que não comete faltas, sou eu, e agora que se passa, porque é que está a olhar para a lista dos telefones, Distraí-me, senhor, Mau sinal, sabe que tem de olhar sempre para mim quando lhe falo, é do regulamento disciplinar, eu sou o único que tem direito a desviar os olhos, Sim senhor, Qual foi a falta, Não sei, senhor, Nesse caso ainda é mais grave, as faltas esquecidas são as piores, Tenho sido cumpridor dos meus deveres, As informações de que disponho a seu respeito eram satisfatórias, mas isso, precisamente, só serve para demonstrar que a sua má conduta profissional destes dias não foi a consequência duma falta esquecida, mas duma falta recente, duma falta de agora, A consciência não me acusa, As consciências calam-se mais do que deviam, por isso é que se criaram as leis, Sim senhor, Tenho de tomar uma decisão, Sim senhor, E já a tomei, Sim senhor, Aplico-lhe um dia de suspensão, E a suspensão, senhor, é só de salário, ou também é de serviço, perguntou o senhor José, vendo acender-se um vislumbre de esperança, De salário, de salário, o serviço não pode ser mais prejudicado do que já foi, ainda há pouco tempo lhe dei meia hora de folga, não me diga que esperava que o seu mau comportamento fosse premiado com um dia inteiro, Não senhor, Desejo, para seu bem, que lhe sirva de emenda, que volte rapidamente a ser o funcionário correcto que era antes, no interesse desta Conservatória Geral, Sim senhor, Nada mais, regresse ao seu lugar."
José Saramago em "Todos os Nomes"

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