Iniciada na leitura de "Bucareste" de Chico Buarque e das ansiedades do seu escritor anónimo compulsivo, o "chato", li por acaso "A Viagem de Inverno" de George Perec, um dos eleitos, que navega nas mesmas águas, a puxar menos o riso e o calor do corpo. Esta criatura mitológica que me tinha passado despercebida agrada-me bastante, ao contrário da famigerada "mão de deus", que tende a enfastiar-me (virar a página mais depressa): o super escritor, um tipo desconhecido e misterioso, que escapa por entre os dedos analíticos de Vincent, personagem-detective em busca do Graal das letras. Com jeito, vamos dar novamente à mão divina, mas nem quero abrir essa possibilidade. Pelo menos em Buarque, o autor anónimo escreve a metro, um pobre diabo engravatado, encafuado atrás de uma secretária e de uma obsessão pelas palavras. Graças a deus...
"A Viagem de Inverno" foi traduzida para português por José Lima e publicada na excelente revista de contos "Ficções", a nº 7. Em inglês pode ser lida livremente online, aqui. E aqui deixo se não todo, quase todo...
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A Viagem de Inverno
Georges Perec
(1979)
Na última semana de Agosto de 1939, enquanto os rumores de guerra invadiam Paris, um jovem professor de letras, Vincent Degraël, foi convidado a passar alguns dias numa propriedade nas proximidades do Havre que pertencia aos pais de um dos seus colegas, Denis Borrade. Na véspera da partida, quando explorava a biblioteca dos anfitriões à procura de um daqueles livros que há muito nos propusemos a ler, mas que geralmente só teremos tempo de folhear distraidamente ao canto da lareira antes de nos chamarem para sermos o quarto jogador na mesa de bridge, Degraël encontrou por acaso um pequeno volume intitulado A Viagem de Inverno, cujo autor, Hugo Vernier, lhe era absolutamente desconhecido, mas cujas primeiras páginas lhe causaram uma impressão tão forte que ele mal se deu ao trabalho de se despedir do amigo e dos pais dele, antes de subir para o ler no quarto.
A Viagem de Inverno era uma espécie de narrativa escrita na primeira pessoa, e situada numa região semi-imaginária, cujos céus pesados, florestas sombrias, colinas moles e canais cortados por comportas esverdinhadas evocavam com uma insistência insidiosa as paisagens da Flandres ou das Ardenas. O livro dividia-se em duas partes. A primeira, mais curta, retraçava em termos sibilinos uma viagem de tom iniciático, em que cada etapa era assinalada por um revés, e ao fim do qual o herói anónimo, um homem que tudo levava a crer que fosse jovem, chegava à margem de um lago mergulhado numa bruma espessa; esperava-o aí um passador, que o conduzia a uma ilhota escarpada no meio da qual se elevava uma construção alta e sombria; (...)
A segunda parte constituía só por si cerca de quatro quintos do livro e percebia-se rapidamente que a breve narrativa que a precedia não passava de um pretexto circunstancial. Era uma longa confissão de um lirismo exacerbado, entremeada de poemas, de máximas enigmáticas, de sortilégios blasfemos. Assim que começou a lê-la Vincent Degraël teve uma sensação de mal-estar que lhe foi impossível definir precisamente, mas que se foi acumulando à medida que ia passando as páginas do volume com uma mão cada vez mais trémula: era como se as frases que tinha diante dos olhos se lhe tornassem de súbito familiares, irresistivelmente se pusessem a recordar-lhe qualquer coisa, como se à leitura de cada uma delas viesse impor-se, ou antes sobrepor-se, a recordação ao mesmo tempo precisa e indefinida de uma frase que seria quase idêntica e que ele teria já lido algures; era como se aquelas palavras, mais ternas que carícias ou mais pérfidas que venenos, essas palavras ora límpidas ora herméticas, obscenas ou calorosas, cintilantes, labirínticas, e oscilando continuamente como a agulha enlouquecida de uma bússula entre uma violência iluminada e uma serenidade fabulosa, desenhassem uma configuração confusa onde dir-se-ia descobrir-se a esmo Germain Nouveau e Tristan Corbière, Villiers e Banville, Rimbaud e Verhaeren, Charles Cros e Léon Bloy.
Vincent Degraël, cujo campo de interesses cobria precisamente estes autores - preparava há anos uma tese sobre "a evolução da poesia francesa dos parnasianos aos simbolistas" - pensou a princípio que realmente podia ter já lido aquele livro ao sabor de alguma pesquisa, depois, e mais plausivelmente, que era vítima de uma ilusão de dejá vù pela qual, como quando o simples gosto de um trago de chá nos conduz repentinamente a Inglaterra trinta anos antes, bastara um nada, um som, um cheiro, um gesto - talvez o momento da hesitação que denotara antes de retirar o livro da estante onde estava colocado entre Verhaeren e Vielé-Griffin, ou então a maneira ávida como tinha percorrido as primeiras páginas - para que a lembranºa falaciosa de uma leitura anterior viesse sobrepôr-se e perturbar, até tornar impossível, a leitura que agora fazia. Mas em breve a dúvida deixou de ser possível e Degraël teve de render-se à evidência: talvez a memória lhe pregasse uma partida, talvez não passasse de um acaso que Vernier desse a impressão de ir buscar a Catulle Mendès o seu "único chacal rondando os sepulcros de pedra", talvez se pudesse tomar em consideração os encontros fortuitos, as influências assumidas, as cópias inconscientes, a busca do pastiche, o gosto das citações, as coincidências felizes, talvez se pudesse considerar que expressões como "o voo do tempo", "névoas de inverno", "obscuro horizonte", "vaporosas fontes", "luzes incertas dos bosques bravios" pertencessem de pleno direito a todos os poetas e que por consequência fosse também normal encontrá-las tanto num parágrafo de Hugo Vernier como nas estrofes de Jean Moréas, mas era absolutamente impossível não reconhecer, palavra a palavra ou quase, simplesmente ao acaso da leitura, aqui um fragmento de Rimbaud ("Via francamente uma mesquita no lugar de uma fábrica, uma escola de tambores feita por anjos") ou de Mallermé ("o inverno lúcido, estação da arte serena"), ali Lautréamont ("Olhava num espelho aquela boca mortificada pela minha própria vontade"), Gustave Kahn ("Deixa expirar a canção... o meu coração chora / Um bistre rasteja em torno das claridades. Solene / O silêncio subiu lentamente, atemoriza / Os ruídos familiares do vago pessoal") ou, ligeiramente modificado, Verlaine ("no interminável enfado da planície, a neve luzia como areia. O céu estava cor de cobre. O comboio deslizava como um murmúrio..."), etc.
Eram quatro horas da manhã quando Degraël acabou a leitura de Viagem de Inverno. Tinha identificado uns trinta empréstimos. Havia certamente outros. O livro de Hugo Vernier parecia não ser mais do que uma prodigiosa compilação de poetas de finais do século XIX, um centão desmesurado, um mosaico em que a bem dizer cada peça era obra de outro. Mas no próprio momento em que se esforçava por imaginar este autor deconhecido que pretendera beber nos livros de outros a própria matéria do seu texto, em que tentava formar uma visão de conjunto deste projecto insensato e admirável, Degraël sentiu nascer nele uma suspeita perturbante: acabava de se lembrar que ao tirar o livro da estante, tinha reparado maquinalmente na data, movido pelo reflexo do jovem investigador que nunca consulta uma obra sem anotar os dados bibliográficos. Talvez se tivesse enganado, mas estava mesmo convencido de que tinha lido: 1864. Verificou, o seu coração em sobressalto. Tinha lido bem: o que significava que Vernier tinha "citado" um verso de Mallarmé com dois anos de antecipação, plagiado Verlaine dez anos antes das suas Ariettes Oubliées, escrito como Gustave Kahn cerca de um quarto de século antes dele! O que queria dizer que Lautréamont, Germain Nouveau, Rimbaud, Corbière e muitos mais não passavam de copistas de um poeta genial e ignorado que, numa única obra, tinha conseguido reunir a própria substância de que iriam alimentar-se depois dele três ou quatro gerações de autores!
(...)
Colocado como professor em Beauvais, Vincent Degraël consagrou a partir de então todo o seu tempo livre à Viagem de Inverno.
Algumas investigações mais profundas nos diários íntimos e na correspondência da maior parte dos poetas de finais do século XIX persuadiram-no rapidamente de que Hugo Vernier conhecera, no seu tempo, a celebridade que merecia: notas como "recebi hoje uma carta de Hugo", ou "escrevi uma longa carta a Hugo", "li V.H. a noite inteira", ou ainda o célebre "Hugo, apenas Hugo" de Havercamp, não se referiam de modo nenhum a "Victor" Hugo, mas sim a este poeta maldito cuja obra breve tinha aparentemente incendiado todos aqueles que a tiveram na mão. Contradições manifestas que a crítica e a história literária nunca tinham nunca podido explicar encontravam deste modo a única solução lógica, e foi evidentemente pensando em Victor Vernier e ao que deviam a Viagem de Inverno, que Rimbaud tinha escrito "Eu é um outro" e Lautréamont "A poesia deve ser feita por todos e não por um".
Mas quanto mais ele fazia realçar o papel preponderante que Hugo Vernier deveria vir a ocupar na história literária da França do final do século passado, menos habilitado se mostrava a fornecer provas tangíveis para tanto: pois que nunca conseguiu ter na mão um exemplar da Viagem de Inverno. O que ele consultara tinha sido destruído - juntamente com a casa - nos bombardeamentos do Havre; o exemplar depositado na Biblioteca Nacional não estava lá quando o requisitou e foi só após demoradas diligências que conseguiu saber que o livro, em 1926, tinha sido enviado a um encadernador que nunca o recebera. Todas as pesquisas que mandou fazer a dezenas e centenas de bibliotecários revelaram-se inúteis, e Degraël em breve se convenceu de que os quinhentos exemplares da edição tinham sido deliberadamente destruídos precisamente por aqueles que nele se tinham inspirado directamente.
Sobre a vida de Hugo Dernier, Vincent Degraël não apurou nada ou quase nada. Por uma notazinha inesperada, descoberta numa obscura Biografia dos homens notáveis da França do Norte e da Bélgica (Verviers, 1882), ficou a saber que nascera em Vimy (Pas-de-Calais) em 3 de Setembro de 1836. Mas o registo civil da municipalidade de Vimy tinha sido queimado em 1916, assim como as duplicatas registadas na perfeitura de Arras. Aparentemente, nunca foi exarada nenhuma certidão de óbito.
Durante cerca de trinta anos, Vincent Degraël esforçou-se em vão por reunir as provas da existência deste poeta e sua obra. Quando morreu, no hospital psiquiárico de Verrières, alguns dos seus antigos alunos empreenderam a tarefa de ordenar o imenso volume de documentos e de manuscritos que ele deixava: entre eles figurava um volumoso álbum encadernado em tela negra, e em cujo rótulo, em caligrafia esmerada, se lia A Viagem de Inverno: as primeiras oito páginas reconstituíam a história destas vãs investigações; as trezentas e noventa e duas seguintes estavam em branco.
light gazing, ışığa bakmak
Monday, December 17, 2007
O escritor anónimo ou "A Viagem de Inverno" de Georges Perec
Publicado por Ana V. às 5:28 PM
TAGS Biblioteca de Babel
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1 comment:
Não haverá hipótese de colocar aqui um leitor, mesmo daqueles que leiem e não dos que "playem", para eu me recostar na cadeira a ouvir a história? Este rato não ajuda na leitura.
Ratoeiras...
Beijo
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