Desastres
Mia Couto
— Então aquilo em Moçambique é que está um desastre!?
O meu coração congela, empalidecido pelo susto. Estou em Lisboa, numa manhã fria de Março. Amanhã vai ser lançado o meu livro de contos. Acordei tarde, o homem do táxi tira proveito do meu cansaço. Mal digo que sou fora, ele dispara a observação sobre o estado desastroso do meu país. Agito-me no banco de trás enquanto as perguntas se atropelam na minha cabeça: Um desastre? Que tragédia abalou o meu país? Novas cheias?
— Desculpe, estou fora há alguns dias, não tenho acesso ao noticiário. Que desastre é que se está a referir?
— Andam por lá a cortar tudo o que é órgão e a vender miúdos. Que barbaridade, no nosso século, ainda acontecerem coisas dessas !
Entendi, então. O homem falava de Nampula, do caso do alegado tráfico de órgãos humanos. Ou por outra: ele não falava de Nampula. Mas de Moçambique. Esse mundo que ele ignorava mas que imaginava como um universo onde todas as atrocidades são possíveis. As notícias que ele não entendia bem eram prova desse palco natural de selvajaria.
— Não acredita, meu senhor? Está em tudo que é jornal !
Quando me retirei da viatura fui, de imediato, comprar jornais para beber da fonte onde o taxista poderia ter bebido. E lá estavam, de facto, os cabeçalhos, as grandes reportagens, as chamadas de primeira página. Li as principais reportagens. E fiquei surpreso. Nenhuma delas era conclusiva sobre fosse o que fosse. Sem factos, sem provas. Mas cada um dos artigos alimentando esse doentio desejo do escândalo. Equipas inteiras de repórteres exportadas para Nampula com o pomposo título de “enviados especiais” remexendo em neblina, poeira e em ecos de rumores. Era como se, de repente, as mais elementares normas daquilo que é o bom jornalismo tivessem sido esquecidas. Falei, nesse instante, com outros jornalistas portugueses que confirmaram a minha impressão sobre esse empolamento.
No regresso, apanhei o mesmo taxista. O homem quis saber se eu tinha lido os jornais. Respondi que sim, que os tinha lido. Não disse mas apeteceu--me perguntar-lhe:
— Então, em Portugal, isto é que vai um desastre !?
E poderia falar da pedofilia que atingiria tudo e todos, envolvendo até os mais altos dirigentes da nação. Fazendo tábua rasa de tudo aquilo que as autoridades de justiça portuguesa pudessem ou não ter comprovado. Porque a lógica do escândalo não se destina a comprovar factos, mas a alimentar um.
Não defendo que não existam problemas a serem esclarecidos em Nampula. Como existirão em outras províncias de Moçambique. E em outros países. Mas o assunto não é esse. O assunto é a capacidade que é reconhecida a um país para ser o produtor da sua própria informação. O direito soberano das suas legítimas instituições de produzirem confirmações ou desmentidos. Senão o que fica desta campanha histérica é a sedimentação do mito da gente diabólica, a desacreditação das autoridades moçambicanas, a promoção da instabilidade e da xenofobia. Um investidor, menos avisado, acredita que algo de nebuloso pode sempre ocorrer num país tão vulnerável. Um turista, menos informado, risca da sua agenda a ideia de escolher Moçambique como destino.
Talvez alguns dos jornalistas portugueses possam repensar este assunto à luz da sua própria experiência doméstica. De tanto elegerem o lado escabroso da história da pedofilia, algum do jornalismo em Portugal agrediu profundamente o seu próprio prestígio dentro e fora do país. Se tomássemos por certo o tratamento que fizeram do assunto da pedofilia acreditaríamos, nós em Moçambique, que Portugal fosse um país de abusadores de crianças. Mas Portugal não é a Casa Pia. Nem Moçambique é um território de selvagens traficantes.
2 abril 2004 jornal savana
light gazing, ışığa bakmak
Monday, February 18, 2008
Desastres, por Mia Couto
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6 comments:
MIA COUTO FOREVER
forever MIA COUTO
Mia Couto ,mia Couto
FOREVER AND EVER
GRANDE PINTA
Respeitosamente
ANONYMUS
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