light gazing, ışığa bakmak

Monday, February 18, 2008

Desastres, por Mia Couto


Desastres

Mia Couto

— Então aquilo em Mo­çambique é que está um de­sastre!?

O meu coração congela, empalidecido pelo susto. Estou em Lisboa, numa manhã fria de Março. Amanhã vai ser lançado o meu livro de contos. Acordei tarde, o homem do táxi tira proveito do meu cansaço. Mal digo que sou fora, ele dispara a observação sobre o estado desastroso do meu país. Agito-me no banco de trás enquanto as perguntas se atropelam na minha cabeça: Um desastre? Que tragédia abalou o meu país? Novas cheias?

— Desculpe, estou fora há alguns dias, não tenho acesso ao noticiário. Que desastre é que se está a referir?

— Andam por lá a cortar tudo o que é órgão e a vender miúdos. Que barbaridade, no nosso século, ainda aconte­cerem coisas dessas !

Entendi, então. O homem falava de Nampula, do caso do alegado tráfico de órgãos humanos. Ou por outra: ele não falava de Nampula. Mas de Moçambique. Esse mundo que ele ignorava mas que imaginava como um universo onde todas as atrocidades são possíveis. As notícias que ele não entendia bem eram prova desse palco natural de selva­jaria.

— Não acredita, meu sen­hor? Está em tudo que é jornal !

Quando me retirei da viatura fui, de imediato, com­prar jornais para beber da fonte onde o taxista poderia ter bebido. E lá estavam, de facto, os ca­beçalhos, as grandes re­por­tagens, as chamadas de pri­meira pági­na. Li as principais reportagens. E fiquei surpre­so. Nenhuma delas era con­clu­siva sobre fosse o que fosse. Sem factos, sem provas. Mas cada um dos artigos alimen­tando esse doentio desejo do es­cândalo. Equipas inteiras de repórteres exportadas para Nampula com o pomposo título de “enviados especiais” reme­xendo em neblina, poeira e em ecos de rumores. Era como se, de repente, as mais elemen­tares normas daquilo que é o bom jornalismo tivessem sido esque­cidas. Falei, nesse ins­tante, com outros jornalistas portu­gueses que confirmaram a minha impressão sobre esse empolamento.

No regresso, apanhei o mesmo taxista. O homem quis saber se eu tinha lido os jornais. Respondi que sim, que os tinha lido. Não disse mas apeteceu--me perguntar-lhe:

— Então, em Portugal, isto é que vai um desastre !?

E poderia falar da pedofilia que atingiria tudo e todos, envolvendo até os mais altos dirigentes da nação. Fazendo tábua rasa de tudo aquilo que as autoridades de justiça portu­guesa pudessem ou não ter comprovado. Porque a lógica do escândalo não se destina a comprovar factos, mas a alimen­tar um.

Não defendo que não exis­tam problemas a serem escla­recidos em Nampula. Como existirão em outras províncias de Moçambique. E em outros países. Mas o assunto não é esse. O as­sunto é a capacidade que é reconhecida a um país para ser o produtor da sua própria informação. O direito soberano das suas legítimas instituições de produzirem confirmações ou desmentidos. Senão o que fica desta cam­panha histérica é a sedimen­ta­ção do mito da gente diabólica, a desacreditação das auto­ridades moçambicanas, a pro­moção da instabilidade e da xenofobia. Um investidor, me­nos avisado, acredita que algo de nebuloso pode sempre ocorrer num país tão vulne­rável. Um turista, menos informado, risca da sua agenda a ideia de escolher Moçam­bique como destino.

Talvez alguns dos jornalis­tas portugueses possam re­pen­sar este assunto à luz da sua própria experiência domés­tica. De tanto elegerem o lado escabroso da história da pe­dofilia, algum do jornalismo em Portugal agrediu profun­damente o seu próprio prestígio dentro e fora do país. Se tomássemos por certo o trata­men­to que fizeram do assunto da pedofilia acreditaríamos, nós em Mo­çambique, que Portugal fosse um país de abusadores de crianças. Mas Portugal não é a Casa Pia. Nem Moçambique é um territó­rio de selvagens traficantes.

2 abril 2004 jornal savana

6 comments:

Anonymous said...

MIA COUTO FOREVER

Anonymous said...

forever MIA COUTO

Anonymous said...

Mia Couto ,mia Couto

Anonymous said...

FOREVER AND EVER

Anonymous said...

GRANDE PINTA

Anonymous said...

Respeitosamente
ANONYMUS

 
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