light gazing, ışığa bakmak

Monday, March 3, 2008

à luz, entrevendo a pele e não o mito

Sentada à mesa ou deitada, serão de trabalho adiado para a noite seguinte, exaustão. Decido arrumar a casa, recapitular. Perseguindo as mulheres de José Cardoso Pires, era projecto, acabou por se provar proveitoso. Por vezes - muitas - os tiros no escuro dão nisto mesmo.

- As personagens femininas são centrais na sua obra...

- Talvez, eu, por mim, não tenho nada a opor... Creio até que na realidade portuguesa a condição feminina é muito mais representativa das contradições do nosso tempo do que a do homem. As assimetrias sociais são mais visíveis, pelo menos... Por outro lado, a mulher também tem, por natureza, um realismo muito mais forte do que o homem, por muito controverso que isto possa parecer. Mas tem, para mim tem. O seu próprio percurso biológico é, já de si, perfeitamente demarcado, eloquentemente demarcado, diria mesmo, em todos os capítulos do seu corpo. Menstruação, desfloramento, maternidade, menopausa, tudo aparece com uma precisão por vezes dramática e registada a sangue. No homem, não. No homem as transições são incomparavelmente mais abstractas. No homem, a puberdade é normalmente uma viragem incolor e a andropausa vem diluída em indefinições e metáforas."

Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, que retirei daqui.

Cá está, o cardápio:

Os Caminheiros e outros contos (conto - 1949)
Histórias de Amor (conto - 1952)
O Anjo Ancorado (romance - 1958)
O Render dos Heróis (teatro - 1960)
A Cartilha do Marialva (ensaio - 1960)
Jogos de Azar (conto - 1963)
O Hóspede de Job (romance - 1963)
O Delfim (romance - 1968)
Dinossauro Excelentíssimo (fábula - 1972)
E Agora, José? (ensaio - 1977)
O Burro em Pé (conto - 1979)
Corpo Delito - na Sala de Espelhos (teatro - 1980)
Balada da Praia dos Cães (romance - 1982)
Alexandra Alpha (romance - 1987)
A República dos Corvos (crónica - 1988)
A Cavalo no Diabo (crónica - 1994)
De Profundis, Valsa lenta (memória - 1997)
Lisboa, Livro de Bordo (crónica - 1997)

Ou, dito por outras palavras, entrevejo a pele e desmancho-me logo toda. Seriam outros assuntos, mas pensar não chega. A filosofia, matemática incompleta porque não é capaz de cheirar o basílico nem os escapes da hora de ponta. (ou é?) Maria das Mercês não é personagem "plana", como odeio estas etiquetas, forcefed aos "jovens" como pílulas, o programa, conteúdos programáticos. Melhor imaginar-lhe o corpo branco, o sapato desconfortável de salto, o fumo da cigarrilha, o cabelo na escova.

O pinhal é uma paliçada entre mim e a lagoa, onde, num pântano, a Urdiceira, existe uma ferida por fechar. Arrancaram de lá o corpo de Maria das Mercês, esse espinho branco cravado no lodo, essa anémona de cabelos soltos a tremularem na corrente. Ofélia, murmuro. Ofélia à flor das águas como no sempre venerado santo William Shakespeare.

Mas estes montes são pobres. Nem ao anoitecer têm grandeza para se poder estender sobre eles um imponente manto de púrpura digno de dar passagem a uma Ofélia. E, francamente, só por delírio pretensioso é possível chegar a tamanha ingratidão para com Maria das Mercês, criatura humana - não dos livros. [meta, meta, meta, gritei] Ofélia, Hamlet, Cena V, e coisa e loisa, estão a mais neste cenário. Saint William Shakespeare disse tudo sobre o assunto. Esgotou-o, meteu-nos a todos no saco dele porque escreveu uma bíblia e «na Bíblia (cito de memória) contém-se até a defesa dos diabos». O melhor é deixar essa gente em paz com os encenadores - ou em guerra, se houver vantagem nisso para o Teatro. Daí lavo as minhas mãos e afasto o olhar do pinhal. Ninguém tem culpa dos caçadores enfrascados em literatura.

N'O Delfim
José Cardoso Pires

Sai daqui, santo WS! grita Cardoso Pires.

3 comments:

Anonymous said...

boas leituras...:)
trout

Tozzola said...

Excerto de entrevista de Mia Couto, na Tabu:
'Como foi a infância?
Foi uma coisa mágica. Ainda não saí de lá. Havia um sentido de espaço, de ausência de medo. (...) ia de férias, de comboio, durante um mês inteiro e os meus pais não sabiam onde eu estava. Não se preocupavam. Não é que fossem maus pais. Mas não havia a presença do medo. Esta apropriação do infinito, da distância, da amizade total, da entrega total, foi muito marcante.(...)
Ainda exerce, paralelamente à escrita?
É mais ao contrário. Eu ainda escrevo em paralelo ao que faço como biólogo [risos].(...) Muitas vezes, enquanto estou a fazer biologia - sou ecologista e trabalho muito no campo - estou recolhendo histórias. Sempre que há luz do dia estou tomando notas e estou sendo escritor também.(...)
Há um processo de escrita e criação?
Não há. Ou até pode haver, mas não sei descrvê-lo nem sei onde começa. as histórias nascem-me de maneira tão variada. Cada um daqueles romances ou livro de contos nasceu de uma pequena sugestão, um grão de areia qualquer em que eu parei. É profundamente caótico. Há um momento de recolha, em que tenho de ficar num estado quase de embriaguez e aí surgem-me as palavras, as personagens. Depois tem um momento igual a todos os outros, que é o momento oficinal.'
A leitura desta entrevista fez o suburbano da linha de Sintra andar mais depressa e esvaziar-se de gente. E o dia tornou-se leve.
Beijos e boas leituras

Ana V. said...

Suburbano transmitindo a leveza! :) Obrigada pela entrevista. Juro a mim própria que a próxima vez que o Mia Couto vier a Lisboa, desta não falho. E lá o falhei de novo. Agora resta-me ler o SOL. Obrigada, mesmo. Beijinhos!

 
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