À partida, a arte do puzzle parece uma arte breve, uma arte débil, que inteiramente se contém num magro ensinamento da Gestalttheorie: o objecto visado - quer se trate de um acto de percepção, de uma aprendizagem, de um sistema fisiológico ou, no caso que nos ocupa, de um puzzle de madeira - não é a soma de elementos que haveria que começar por isolar e analisar, mas um conjunto, não é nem mais imediato nem mais antigo, não são os elementos que determinam o conjunto, mas o conjunto que determina os elementos; o conhecimento do todo e das suas leis, do conjunto e da sua estrutura, não pode ser deduzido do conhecimento separado das partes que o compõem. Quer isto dizer que podemos olhar para a peça de um puzzle durante três dias e julgar saber tudo acerca da sua configuração e da sua cor sem ter avançado coisíssima nenhuma; apenas conta a possibilidade de ligar esta peça a outras peças e, neste sentido, há algo de comum entre a arte do puzzle e a arte do go: só as peças reunidas tomarão um carácter legível, assumirão um sentido. Considerada isoladamente uma peça de um puzzle não quer dizer nada, é apenas uma questão impossível, um desafio opaco. Mas, mal conseguimos, ao cabo de vários minutos de tentativas e erros, ou em meio-segundo religiosamente inspirado, juntámo-la a uma das suas vizinhas, a peça desaparece, deixa de existir enquanto peça: a intensa dificuldade que precedeu esta aproximação, e que a palavra "puzzle" - enigma - tão bem designa em inglês, não só deixa de ter razão de ser como parece nunca a ter tido, de tal modo se tornou evidência - as duas peças miraculosamente reunidas são já uma só, por sua vez fonte de erro, de hesitação, de confusão e de expectativa.
(...)
Daqui se deduzirá algo que é sem dúvida a última verdade do puzzle: apesar das aparências, não se trata de um jogo solitário - cada gesto do decifrador de puzzles foi feito, antes dele, pelo fazedor de puzzles; cada peça em que pega e repega, que examina, que acaricia, cada combinação que tenta uma vez e outra, cada ensaio, cada intuição, cada esperança, cada desânimo, foram decididos, calculados, estudados pelo outro.
A Vida: Modo de Usar
Preâmbulo
George Perec
... em cima da mesa da sala. For the duration. Com este, os As Cidades Invisíveis e Todos os Fogos o Fogo, vá-se lá saber porquê. Nem me lembro se alguém mo deu, como cheguei a ele, por que coincidência. Sei que foi emprestado, em tempos, a quem não o leu. Sei que me foi devolvido num saco de plástico que deitei sem abrir num contentor do lixo. Over and out.
light gazing, ışığa bakmak
Wednesday, May 7, 2008
a capela sistina em três mil peças
Publicado por Ana V. às 9:44 PM
TAGS Biblioteca de Babel
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2 comments:
Ora aí está uma coisa que também eu gostava de ter sido eu a pensar nela primeiro. :)
Esse empréstimo para cá e para lá vai sempre marcar a tua leitura. Têm piada as nossas vidas, e a forma como elas "condicionam" as nossas leituras. [A ti, pelo menos, devolveram.to num saco de plástico. A mim, os Gore Vidal chegaram depois de ano e meio de "não é por nada, mas...", e com um barman como intermediário. A Maya Angelou, essa, creio que a perdi para sempre - pura preguiça; há sempre uma Amazon à distância de um clique]
A propósito, sem ter completamente a ver:
Estava a ler um livro e a motivação que tinha para o ler, perdi.a. E agora?
Beijo - à quintaaaa
Eu sou suspeita: sei o que fiz e com quem estive pelo livro que estava a ler. às vezes (!) penso que é exagero..... A pergunta é fácil: prateleira com ele. Tenho uns dois ou três nesse limbo. É mais ou menos como os beijos, não apetece, não se dá :))
Beijinho PEC
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