light gazing, ışığa bakmak

Wednesday, April 22, 2009

ele escreve e eu leio

são as vantagens do google reader. este, ao que diz, foi escrito há mais tempo e surge no blogue porque não faz má figura. não há como acordar assim. aqui, só um excerto.

Da impossibilidade deste retrato
J. Saramago

"Que retrato de si mesmo pintaria Fernando Pessoa se, em vez de poeta, tivesse sido pintor, e de retratos? Colocado de frente para o espelho, ou de meio perfil, obliquando o olhar a três quartos, como quem, de si mesmo escondido, se espreita, que rosto escolheria e por quanto tempo? O seu, diferente segundo as idades, assemelhando a cada uma fotografias que dele conhecemos, ou também o das imagens não fixadas, sucessivas entre o nascimento e a morte, todas as tardes, noites e manhãs, começando no Largo de S. Carlos e acabando no Hospital de S. Luís? O de um Álvaro de Campos, engenheiro naval formado em Glasgow? O de\Alberto Caeiro, sem profissão nem educação, morto de tuberculose na flor da idade? O de Ricardo Reis, médico expatriado de quem se perdeu o rasto, apesar de algumas notícias recentes obviamente apócrifas? O de Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na baixa lisboeta? Ou um outro qualquer, o Guedes, o Mora, aqueles tantas vezes invocados, inúmeros, certos, prováveis e possíveis? Representar-se-ia de chapéu na cabeça? De perna traçada? De cigarro apertado entre os dedos? De óculos? De gabardina vestida ou sobre os ombros? Usaria um disfarce, por exemplo, apagando o bigode e descobrindo a pele subjacente, de súbito nua, de súbito fria? Cercar-se-ia de símbolos, de cifras da cabala, de signos horoscópicos, de gaivotas no Tejo, de cais de pedra, de corvos traduzidos do inglês, de cavalos azuis e jockeys amarelos, de premonitórios túmulos? Ou, ao contrário destas eloquências, ficaria\sentado diante do cavalete, da tela branca, incapaz de levantar um braço para atacá-la ou dela se defender, à espera de um outro pintor que ali fosse tentar o impossível retrato? De quem? De qual?

De uma pessoa que se chamou Fernando Pessoa começa a ter justificação o que de Camões já se sabe. Dez mil figurações, desenhadas, pintadas, modeladas, esculpidas, acabaram por tornar invisível Luís Vaz, o que dele ainda permanece é o que sobra: uma pálpebra caída, uma barba, uma coroa de louros. É fácil de ver que Fernando Pessoa também vai a caminho da invisibilidade (...) Há razões para pensar que a língua é, toda ela, obra de poesia."

2 comments:

Popelina said...

Ana,

Bem, também fiz um post sobre. Autêntica maravilha este texto. e o 2 também, já o viste?

Ana V. said...

Não perco um :)

 
Share