light gazing, ışığa bakmak

Wednesday, September 29, 2010

até já não conseguir decifrar as palavras

"Como gostava, disse Austerlitz, de me sentar com um livro ao cair da tarde até já não conseguir decifrar as palavras e o pensamento começar a andar em círculos, como me sentia protegido quando me punha à secretária, na minha casa às escuras, e via à luz do candeeiro a ponta do lápis correndo atrás da sua sombra, como se por vontade própria e com perfeita lealdade enquanto essa sombra se deslocava paulatinamente da esquerda para a direita, linha a linha, sobre o papel pautado. Contudo, tornou-se-me tão difícil escrever que precisava de um dia inteiro para uma só frase, produzida com extraordinário esforço, ficava escrita, logo mostrava a penosa inautenticidade das minhas construções e a inadequação do conjunto de palavras que tinha usado. Quando por vezes, iludindo-me a mim próprio, sentia que apesar de tudo tinha ganho o meu dia, era certo que, ao lançar o primeiro olhar à folha na manhã seguinte, encontraria os piores erros, incongruências e dislates. Muito ou pouco que tivesse escrito parecia sempre, a uma leitura posterior, tão destituído de fundamentos que tinha de o destruir sem demora e começar de novo. Em breve se me tornou desagradável dar sequer o primeiro passo. Como um equilibrista que deixa de saber como se põe em pé à frente do outro no arame, sentia apenas uma plataforma instável por baixo de mim e via, aterrado, que as pontas reluzentes da vara de equilíbrio, bem no limite do meu campo de visão, já não eram como outrora a minha luz de guia, mas malignos incitamentos a que me atirasse para o vazio. Uma vez por outra desenhava-se com inteira clareza na minha cabeça uma linha de pensamento, embora eu soubesse, mal ela se formava, que seria incapaz de a reter, pois logo que pegava no lápis as infinitas possibilidades da linguagem a que antes podia abandonar-me com toda a confiança tornavam-se uma miscelânea de frases de tremendo mau gosto. Não havia pertinência das expressões que não se revelasse uma miserável muleta, nem palavra que não soasse a falso e a oco. E neste vergonhoso estado de espírito me mantive durante horas, dias a fio, de cara virada para a parede, a atormentar a alma, e gradualmente fui percebendo como é horrível descobrir que a mínima tarefa ou dever, por exemplo, a arrumação de uma gaveta com várias coisas, está para além das nossas forças. Foi como se uma doença em mim latente há muito procurasse declarar-se, como se se tivesse apossado de mim um aturdimento, uma prostração que lentamente acabaria por me paralisar todo. Sentia já na minha fronte o terrível torpor que anuncia a degradação da personalidade, que na realidade já não possuía memória nem capacidade de pensamento, nem sequer vida própria, que toda a minha existência tinha sido passada a extinguir-me e a apartar-me de mim e do mundo. Se alguém tivesse vindo então buscar-me para me levar para o local de execução ter-me-ia deixado ir calmamente, sem dizer uma palavra, sem abrir os olhos, como as pessoas que, ao atravessarem, por exemplo, o Mar Cáspio num vapor, sofressem de tão violento enjoo que não oferecessem a mínima resistência a quem viesse informá-las de que iam ser lançadas borda fora. Fosse o que fosse que se passava em mim, disse Austerlitz, o sentimento de pânico com que encarava o início da escrita de qualquer frase sem saber como começar essa frase ou qualquer outra não tardou a abranger essa outra ocupação em si mais simples que é a leitura, até que comecei a cair inevitavelmente num estado do maior desconcerto sempre que procurava abarcar uma página inteira.  Se pudermos considerar a linguagem uma velha cidade com um emaranhado de ruas e de praças, com bairros que remontam longe no tempo, com quarteirões demolidos, limpos e construídos de novo e subúrbios que se vão alargando ao campo circundante, eu serei uma pessoa que, após uma longa ausência, já não consegue encontrar o caminho neste aglomerado, já não sabe para que serve uma paragem de autocarro, o que é um saguão, um cruzamento, uma avenida ou uma ponte. Todo o articulado da língua, o ordenamento sintáctico de cada elemento, pontuação, conjunções e por fim até mesmo os nomes das coisas vulgares, tudo ficou mergulhado numa neblina impenetrável. Também o que eu próprio tinha escrito no passado, isso particularmente, deixei eu de entender. Estava sempre a pensar: portanto, uma frase, uma coisa pretensamente cheia de sentido, é na verdade quando muito um expediente medíocre, uma espécie de excrescência da nossa ignorância com a qual tacteamos às cegas a escuridão que nos rodeia, do mesmo modo que muitas plantas e animais marinhos usam os seus tentáculos. Precisamente o que de costume contém a expressão de uma inteligência bem orientada, a exposição de uma ideia mediante certa competência estilística, não passava, parecia-me então, de empresa de todo arbitrária ou ilusória. Já não via coerência alguma, as frases diluíam-se em muitas palavras isoladas, as palavras numa série de conjuntos de letras aleatórios, as letras em sinais desmantelados e estes num rasto cor de chumbo com reflexos prateados aqui e além que alguma criatura rastejante tivesse segregado e deixado como rasto e cuja visão me enchia cada vez mais de sentimentos de horror e vergonha. Uma noite, disse Austerlitz, peguei em todos os meus papéis soltos ou em maços, nos blocos e cadernos de apontamentos, nas fichas e notas de leitura, tudo o que tivesse sido escrito por mim, tirei tudo de casa e levei para o extremo mais afastado do jardim, para o monte do composto, onde enterrei aquilo sob camadas de folhas podres e pazadas de terra alternadas."
Sebald em Austerlitz.

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