light gazing, ışığa bakmak

Wednesday, September 29, 2010

Johnny Guitar



“‘Aquele que por uma vez compreendeu o que é a recordação. mantém-se por toda a eternidade prisioneiro de um só e mesmo recordar”. A citação é de Kierkegaard, tem que ver com a diferença proposta por esse autor no Banquete, entre lembrar e recordar e servi-me dela há quarenta e muitos anos para defender que o cinema de Nick Ray é um cinema de recordação. Numa total solidão, em grandes planos, Johnny e Vienna ferem-se e desejam para lá de tudo encontrar e esquecer. Em completa imobilidade, a despropósito, Sterling Hayden diz: ”Don't go away”. Joan Crawford só e parada responde: ”I haven't moved”. A câmara é um microscópio que detecta a melodia do olhar escreveu Nick Ray. Ou a passagem para a metafísica. I haven't moved... em vagarosa frase.
Há as “mortes” de Vienna e Guitar já para aquém da cascata (outras tantas são também as passagens por ela) imobilizados na canção que sempre recordam, começando de servir outros cinco anos.
Rever as imagens do Johnny Guitar é rever a recordação delas. Para quem o vê pela primeira vez, é ainda de rever que se trata. Porque todos os personagens não fazem outra coisa.
E que revêem eles? Os cinco anos que não vemos, de que nada sabemos de certeza certa, que decorrem entre a saída de Guitar dum saloon e a sua entrada noutro, Os cinco anos que deram a Vienna a amargura, a Johnny o cansaço, ao Kid a desesperança, a Emma o recalcamento e o ódio, a Turkey o primeiro amor impossível e, consequentemente, a morte possível. Os cinco anos que fizeram aqueles olhos, aquelas vozes, aquele tempo, aquele espaço. Cada um os revê até morrer e os que sobrevivem (Vienna e Johnny) sabem que não revivem coisa diferente “wherever they go” “wherever they stand”.
Johnny Guitar é, um filme construído em flash-back sobre uma imensa elipse? Ou é uma imensa elipse construída sobre um flash que não pode come back? Ou será que é tudo a mesma coisa? “Só recordam aqueles que confidenciam, a recordação é uma arte que arranca da solidão e do silêncio”, escrevi há quarenta e muitos anos, sem ainda saber ler nem escrever. Hoje, que tinha obrigação de saber mais, só posso repetir que esta arte recordatória, este filme mítico, este filme-mito (tão, tão diferente da memória) arranca também daí: da solidão e do silêncio.
Trinta anos depois, ou quase - também - Nicholas Ray destruído, cego dum olho, com o cabelo todo branco, tão e tão magro, veio dizer-nos (We Can't Go Home Again) que ajudar-nos uns aos outros era a nossa única possibilidade de sobrevivência. Não se passa em vão tantas vezes debaixo daquela cascata. He hasn't moved. Percebam-no e amem-no os que também não.

João Bénard da Costa
(texto adaptado)
Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema
que tirei daqui.

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