(ideias ainda em construção, as minhas)
penso que deva ser coincidência duas 'Marias, as loucas' terem passado por Lisboa num tão curto intervalo de tempo: primeiro, a Rainha Louca, ópera em estreia de Alexandre Delgado, e agora D. Maria, a Louca de Maria do Céu Guerra n'A Barraca, com um excelente texto de Antônio Cunha. são algumas as semelhanças interessantes entre ambas: a entrega das intérpretes à personagem que praticamente domina toda o espaço do palco como figura trágica, a existência de uma criada negra que na ópera não canta e que no teatro não fala, a revisão da história, a humanização de uma figura que era até aqui pouco mais do que um 'cognome'. outro ponto de contacto: onde na obra de A. Delgado vi as bruxas de Macbeth nas três cortesãs, aqui claramente está Lady Macbeth a lavar as mãos, esta não do sangue do crime mas da sujidade da culpa que a água benta teima em não limpar. seria interessante seguir o tema da sujidade no texto ("Se vazia fosse, pura seria"). aliás, este texto é uma prenda oferecida ao público e, como em outras ocasiões n'A Barraca, tenho pena de não o poder lá comprar para reler todas as vezes que ele merece.
a diferença que me parece mais evidente entre os dois espectáculos é a sua origem: a Louca de A. Delgado baseia-se num texto do português Miguel Rovisco (sobre o qual esta carta diz muita coisa), a de Maria do Céu Guerra tem texto de Antônio Cunha, de Florianópolis. em ambos os lados do 'great divide' encontram-se afinal as ideias. outra diferença: a obra de Delgado foi uma estreia lisboeta, a de A. Cunha estreou em 2006 no Brasil.
à parte a História que nos (a nós público) é contada o que, penso, é um acto generoso e que convém abraçar como a uma benção divina em tempos, os de agora, de apagamento da história, gostei disto: o facto de Maria do Céu Guerra emprestar o corpo de forma magnífica, como sempre se espera dela, para fazer viver esta rainha (outra forma de generosidade: podia ter-se dado a outra personagem e não a esta rainha); o facto de a criada preta ser verdadeiramente ninguém, sem voz, sem corpo, sem sequer ser actor a quem pudéssemos aplaudir. e gostei de tantos momentos de crítica social: as mulheres (o rei de França não manteve a cabeça por usar calças), a maçonaria, que se espalha como peste, a monarquia e o povo, os impostos, a figura de Tiradentes e a liberdade, a água do rio que fugia entre os dedos como areia pela última vez, o exílio.
em pouco tempo vi três actrizes interpretando personagens a que já chamámos loucas, num crescendo de intensidade, não da loucura, mas da interpretação: Alexandra Lencastre como Blanche Dubois, Eunice Muñoz como Flora Goforth, e Maria do Céu Guerra, esta D. Maria. há anos, Carmen Dolores foi a velha na cadeira de baloiço de Rockaby, de Beckett, mas essa era outra loucura.
até dia 31, n'A Barraca: convém ir a correr e marcar lugar logo à porta.
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A corte Portuguesa parte no mês de Novembro de 1807 para o Brasil. São 15000 almas embarcadas numa enorme frota para defender da Invasão Francesa a coroa e o corpo. Em Fevereiro de 1808 chega à Baía de Guanabara. O Principe Regente não autoriza o desembarque imediato de sua mãe a rainha louca.
D. Maria é durante dois dias uma rainha fechada no mar e passa em revista o casamento, a morte do filho, a sujeição à igreja, tudo o que foi a sua acção pública e privada e assusta-se com a chegada a uma terra que viu nascer e morrer Tiradentes o único homem sobre o qual ela usou o seu “direito de mandar matar”.
D. Maria está louca mas é dona de uma loucura que a protagonista define de forma magistral “a loucura não é uma porta que se nos fecha mas muitas janelas que se nos abrem, só que todas ao mesmo tempo”. A filha de D. José foi a primeira mulher que ocupou o trono. “Uma rainha num reino de homens”. daqui.
Maria do Céu, para ouvir aqui.
1 comment:
A personagem aia: "Joaninha" ou "D. Joana Rita" a criada negra de D. Maria I, no espectaculo "D. Maria, A Louca" de Antônio Cunha, em cena pela Cia A Barraca, não é interpretada por uma atriz, mas sim, pelo ator Adérito Lopes. Assim como informa o programa, cartaz e todas as noticias sobre esta criação de Maria do Céu Guerra.
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