light gazing, ışığa bakmak

Friday, July 29, 2011

"Penso, logo peco."

(ideias ainda em construção, as minhas)



penso que deva ser coincidência duas 'Marias, as loucas' terem passado por Lisboa num tão curto intervalo de tempo: primeiro, a Rainha Louca, ópera em estreia de Alexandre Delgado, e agora D. Maria, a Louca de Maria do Céu Guerra n'A Barraca, com um excelente texto de Antônio Cunha. são algumas as semelhanças interessantes entre ambas: a entrega das intérpretes à personagem que praticamente domina toda o espaço do palco como figura trágica, a existência de uma criada negra que na ópera não canta e que no teatro não fala, a revisão da história, a humanização de uma figura que era até aqui pouco mais do que um 'cognome'. outro ponto de contacto: onde na obra de A. Delgado vi as bruxas de Macbeth nas três cortesãs, aqui claramente está Lady Macbeth a lavar as mãos, esta não do sangue do crime mas da sujidade da culpa que a água benta teima em não limpar. seria interessante seguir o tema da sujidade no texto ("Se vazia fosse, pura seria"). aliás, este texto é uma prenda oferecida ao público e, como em outras ocasiões n'A Barraca, tenho pena de não o poder lá comprar para reler todas as vezes que ele merece.

a diferença que me parece mais evidente entre os dois espectáculos é a sua origem: a Louca de A. Delgado baseia-se num texto do português Miguel Rovisco (sobre o qual esta carta diz muita coisa), a de Maria do Céu Guerra tem texto de Antônio Cunha, de Florianópolis. em ambos os lados do 'great divide' encontram-se afinal as ideias. outra diferença: a obra de Delgado foi uma estreia lisboeta, a de A. Cunha estreou em 2006 no Brasil.

à parte a História que nos (a nós público) é contada o que,  penso, é um acto generoso e que convém abraçar como a uma benção divina em tempos, os de agora, de apagamento da história, gostei disto: o facto de Maria do Céu Guerra emprestar o corpo de forma magnífica, como sempre se espera dela, para fazer viver esta rainha (outra forma de generosidade: podia ter-se dado a outra personagem e não a esta rainha); o facto de a criada preta ser verdadeiramente ninguém, sem voz, sem corpo, sem sequer ser actor a quem pudéssemos aplaudir.  e gostei de tantos momentos de crítica social: as mulheres (o rei de França não manteve a cabeça por usar calças), a maçonaria, que se espalha como peste, a monarquia e o povo, os impostos, a figura de Tiradentes e a liberdade, a água do rio que fugia entre os dedos como areia pela última vez, o exílio.

em pouco tempo vi três actrizes interpretando personagens a que já chamámos loucas, num crescendo de intensidade, não da loucura, mas da interpretação: Alexandra Lencastre como Blanche Dubois, Eunice Muñoz como Flora Goforth, e Maria do Céu Guerra, esta D. Maria. há anos, Carmen Dolores foi a velha na cadeira de baloiço de Rockaby, de Beckett, mas essa era outra loucura.

até dia 31, n'A Barraca: convém ir a correr e marcar lugar logo à porta.

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A corte Portuguesa parte no mês de Novembro de 1807 para o Brasil. São 15000 almas embarcadas numa enorme frota para defender da Invasão Francesa a coroa e o corpo. Em Fevereiro de 1808 chega à Baía de Guanabara. O Principe Regente não autoriza o desembarque imediato de sua mãe a rainha louca.
D. Maria é durante dois dias uma rainha fechada no mar e passa em revista o casamento, a morte do filho, a sujeição à igreja, tudo o que foi a sua acção pública e privada e assusta-se com a chegada a uma terra que viu nascer e morrer Tiradentes o único homem sobre o qual ela usou o seu “direito de mandar matar”.
D. Maria está louca mas é dona de uma loucura que a protagonista define de forma magistral “a loucura não é uma porta que se nos fecha mas muitas janelas que se nos abrem, só que todas ao mesmo tempo”. A filha de D. José foi a primeira mulher que ocupou o trono. “Uma rainha num reino de homens”. daqui.

Maria do Céu, para ouvir aqui.

1 comment:

Luís Miguel Canavilhas said...

A personagem aia: "Joaninha" ou "D. Joana Rita" a criada negra de D. Maria I, no espectaculo "D. Maria, A Louca" de Antônio Cunha, em cena pela Cia A Barraca, não é interpretada por uma atriz, mas sim, pelo ator Adérito Lopes. Assim como informa o programa, cartaz e todas as noticias sobre esta criação de Maria do Céu Guerra.

 
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