light gazing, ışığa bakmak

Sunday, March 24, 2013

julgo que continua a chover quando quero tanto sair. há uma aranha que mora suspensa no meio da luz verde de um semáforo de velocidade na estrada entre sintra e cascais. é grande o suficiente para que a possa ver de dentro do carro quando passo e está lá há mais de um ano. se pudesse, parava para lhe tirar uma fotografia porque gosto de a ver em cima da luz mas parar é impossível: uma via rápida sem bermas e de grande movimento.


de certa maneira, este é o momento.

fizemos uma grande festa que me deixou sem palavras até pelo menos amanhã (o dia em que continua a chover).

ouço o correia na tv ou melhor, ouço o ruído e vejo o esbracejar e espero que volte a falar a escritora que li pela primeira vez há tantos anos (ficaram os flamingos e partes da avenida marginal). talvez na altura em que o a. não era piloto mas tinha já aquela voz. esta noite quando o ouvi lembrei-me dele no café, a falar tal e qual, a mesma voz e os mesmos tiques nas palavras, até o mesmo sorriso nas frases. ouvi-lo foi como estar lá.

talvez fosse a exaustão, talvez fosse a comoção ou o silêncio, ou talvez tivesse sido por ter lido no final do Saramago e no início de Pamuk (no meu entre-livros) a mesma coisa: a necessidade de escrever tudo o que se passa, tudo o que é relevante e o receio de se perderem na memória alguns minutos antes de serem passados a palavras, uma tradução da vida em língua. depois utilizam-se, ou não, os diversos fragmentos de observação. fosse o que fosse, fiquei sem palavras (até pelo menos amanhã).

degradação. que assombra e assusta. a degradação nas pessoas não é poética como a degradação dos edifícios que se enchem de manchas de bolor e de musgos e que, pouco a pouco, são invadidos pela vida. a falta, adversidade, os sentimentos de solidão e de tristeza, a fome e outras palavras das notícias precipitam uma morte lenta.

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diz Saramago em 'Uma noite na Plaza Mayor' em Bagagem de Viajante:

"Vai não vai, surgem-me na memória imagens doutros lugares e doutros dias, casos de viagem, atmosferas, visões rápidas ou demoradas contemplações. Se de tudo isto falo às vezes, não é sem algum constrangimento, assim como quem saiu à rua de fato novo e teme que lhe perguntem se já pagou ao alfaiate. Lá me parece (escrúpulo excessivo de consciência, que hei-de eu fazer?) que o leitor sacode impaciente o livro e diz: «Presunçoso, o tipo.» Mas juro que não sou. Se passo as minhas lembranças ao papel, é mais para que não se percam (em mim) minutos de ouro, horas que resplandecem como sóis no céu tumultuoso e imenso que é a memória. Coisas que são também, com o mais, a minha vida.

Infelizmente, nem tudo pode ser recuperado. Mesmo que eu volte cem vezes a Florença, mesmo que escolha o dia e a luz, não tornarei a repetir o arrepio físico (sim, o arrepio físico, no sentido literal, fisiológico, da expressão) que me percorreu da cabeça aos pés diante da entrada da Biblioteca Lourenciana que Miguel Ângelo projectou e construiu. Seria um milagre, e os milagres, se os há, são preciosos demais para se repetirem. E não tornarei a ver no caminho de Veneza aquele sol suspenso, entre uma neblina de azeite, donde irradiavam as cores do arco-íris, mas brandas, meio mortas, como a cidade que parecia flutuar  sobre jangadas e derivar na corrente.

O trabalho da memória é conservar estas prodigiosas coisas , defendê-las do desgaste banalíssimo do quotidiano, ciosamente, porque talvez não tenhamos outra melhor riqueza . É ela assim como a caverna de Ali Babá, toda fulgurante de jóias, de ouro, de perfumes; ou é como arca de piratas antigos, regressada à luz do dia, que dentro dela acende as pérolas com fogos."

(ainda mais com a sua timidez à mostra, Saramago)

e diz Pamuk no Prefácio americano a  Other Colors:

"This book is made of ideas, images, and fragments of life that have still not found their way into one of my novels. I have put them together here in a continuous narrative. Sometimes it surprises me that I have not been able to fit into my fiction all the thoughts I've deemed worth exploring: life's odd moments, the little everyday scenes I've wanted to share with others, and the words that issue from me with power and joy when there is an occasion of enchantment. Some fragments are autobiographical; some I wrote very fast; others were left to one side when my attention was elsewhere, I return to them in much the same way that I return to old photographs, and - though I rarely reread my novels - I enjoy rereading these essays. What I most like are the moments when they rise above the occasion, when they do more than just meet the requirements of the magazines and newspapers that commissioned them, saying more about my interest, my enthusiasms, than I intended at the time. To describe such epiphanies, such curious moments when truth is somehow illuminated, Virgina Woolf once used the term "moments of being"."


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