light gazing, ışığa bakmak

Monday, May 27, 2013

amor é amor é amor

"Entro na cabina. Como deverei começar? Se lhe peço desculpa da conversa desta manhã, ela fica outra vez cheia de esperanças e lá se me vai meter na cama esta noite. Isso é o pior de tudo. Não se pode mandar uma mulher embora. É horrível, excessivamente cruel. É como bater numa criança. Ainda estou a vê-la, quando isso aconteceu, em Janeiro. Pobre Fernanda... curvada, a sair do quarto, com uma camisa de noite cheia de florzinhas, como se não tivesse mais ninguém no mundo, como se a vida acabasse ali.
Veio oferecer tudo o que tinha e eu não lho quis. Sempre que me lembro disso, sinto arrepios. Mas que podia eu fazer? Representar o papel do marido extremoso? Mentir ainda mais? Dar-lhe ilusões acerca dum futuro que eu sabia não existir?
Foi pena só ter comprado duzentos gramas de passas. São tão boas que bem podia ter comprado meio quilo. Por outro lado, meio quilo já dá um embrulho grande de mais para se ter no bolso. Para a outra vez, compro duzentos e cinquenta gramas.
Entro na cabina e ligo para casa. A Fernanda vem ao telefone.
- Está lá? És tu, Fernanda? (Quem havia de ser? E se fosse um homem? Talvez fosse uma solução...)
-Sou eu.
- É para te dizer que resolvi ir ao cocktail dos Simões.
- Vens buscar-me? (Sinto-lhe a esperança na voz...)
- O melhor será ires lá ter. Encontramo-nos lá. Eu vou cedo, vou às 6 horas.
-Vais assim mesmo ou vens a casa mudar de fato?
- Vou assim mesmo. Não tenho tempo de ir a casa. Se for a casa, já não vou ao «cocktail».
- Pelo sim e pelo não arranjo-te um fato escuro e ponho-te uma camisa lavada em cima da cama.
- Não vale a pena. Vou como estou.
- Mesmo assim, arranjo-te as coisas.
- Não arranjes, que não vale a pena. (Já estamos a discutir...)
- Podes mudar de ideias...
- Nunca mudo de ideias.
- Até logo e obrigado.
-Adeus.
A conversa irritou-me. A mania que ela tem de cuidar de mim! Arranja-me o fato, coloca-me pratinhos de passas sobre a mesa-de-cabeceira, deixa-me sempre qualquer coisa fria no frigorífico... Vive na esperança de que eu mude de ideias. Julgará ela que o amor vai e vem com a mudança de ideias? Que quererá ela? Que eu entre em casa e lhe diga que mudei de ideias e que resolvi voltar a amá-la?"

ou o amor nos anos sessenta, Sttau Monteiro em Um Homem Não Chora.
e no fim (spoiler spoiler spoiler), não sendo o marido a fazê-lo, é o escritor quem a mata.



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